ATANASIANOS
Carta 05: Natal do Senhor 2021
A vós, Senhor, o louvor, a honra e a glória, agora e por toda a eternidade.
Preparemo-nos para o mais importante encontro de nossas vidas, o encontro com o Verbo feito carne, o Filho de Deus que decidiu salvar-nos, assumindo a nossa natureza. Ele traz consigo amor, misericórdia, verdade, vida e liberdade. Todo o universo alegra-se com Sua presença entre nós. Vindo a nós, concede-nos uma vida diferenciada, uma realidade nova, uma nova forma de enxergar as coisas e as pessoas, uma nova lógica, totalmente contrária à mentalidade mundana, que provou sua ineficiência e danos terríveis a todos os seres humanos, como divisões, escravidão, corrupção e destruição da dignidade da pessoa humana. A forma de pensar do homem sem Deus, isto é, do homem carnal, não cria ambientes de vitais, nem comunhão e nem liberdade. Ao contrário, a lógica de Cristo conduz para a verdadeira vida, para a verdade, para o amor e a liberdade de filhos de Deus. É determinante em Jesus Cristo seu intenso desejo de salvação. Tudo Nele se volta para o bem salvífico daqueles que O acolherem, pois para isso Ele se fez carne, humilhou-se, morreu crucificado e fez-se alimento de vida eterna.
Duas coisas Ele exigiu de nós: amar absolutamente a Deus (cf. Dt 6,4-5; Mt 22,37) e, para além do que já havia sido dito em Lv 19,18 sobre amar o próximo como a nós mesmos, amar o próximo como Ele nos amou (cf. Jo 15,12). Isso significa fazer de nossas vidas verdadeiros dons, entregas para o bem dos demais, sermos totalmente doados a Deus e à sua obra e a todos os seus. A vida inteira deveremos estar em estado de kênosis, de esvaziamento, saindo de nós mesmos para o bem do outro. Agir dessa forma é se tornar dom de salvação e libertação. Toda vida de Jesus Cristo se manifestou em estado de esvaziamento. Três grandes eventos marcam sua entrega total: a encarnação, a morte de cruz e o ser eucaristia. Então, amar do jeito de Jesus significa renunciar a si mesmo, abraçar a vontade de Deus e entregar-se como instrumento legítimo de salvação. Seremos capazes de tal empreitada? Certamente, uma vez que o Filho de Deus veio ao nosso encontro.
Atualmente, vivemos uma realidade com narrativas amplamente divulgadas, contrárias a todos os aspectos justificadores da encarnação do Filho de Deus. O mais grave de tudo é, justamente, a relativização da verdade, ou, se quiser, a subjetivação da verdade, ou, ainda, uma aceitação individualista do que se quer como verdade, entre outras coisas. No fundo, tudo isso quer dizer a mesma coisa. Somam-se a isso, sofrimentos, catástrofes, pandemias, desorientações, escândalos e tantas outras coisas negativas, forçando, a muitos, o abandono da reflexão sensata, o desprezo pelas coisas religiosas, o entendimento de que Deus não é necessário, que Ele não protege nada e que não se preocupa com coisa alguma. Então, cada um procura seu próprio meio de subsistência nesse mundo, seu lugar no planeta, construir seu próprio universo. O medo, consequentemente, avança e, com ele, a falta de sentido e a morte precoce e, em muitos casos, pelas próprias mãos. Infelizmente, estruturas manipuladores se aproveitam dessa situação e ainda a fomentam sempre mais. Pululam por toda parte os assim chamados “salvadores”, dentre eles, os mais recentes políticos, corruptos, amantes de si mesmos, delinquentes na razão e na fé, mendigos de dignidade, discípulos da Besta e, por isso mesmo, inimigos do Cordeiro de Deus. Eles agem com um único propósito: escravizar as pessoas, afastando delas Aquele que lhes pode dar a luz da verdade; patrocinam a iniquidade, alimenta tudo aquilo que conduz o ser humano ao fundo do poço, para se lhe apresentarem como legítimos salvadores. Eles negam Deus, Sua salvação, Sua condição de Modelo legítimo, Ele como verdade absoluta e razão de ser. Fragilizado, desorientado, doente e com fome, o ser humano troca sua fé, sua liberdade e sua dignidade pela sua subsistência. Mas tudo pode ser mudado. O Natal é a grande resposta.
Por que o Verbo se fez carne? A doutrina da Igreja Católica nos responde: O Verbo se fez carne para nos salvar reconciliando-nos com Deus, para que assim conhecêssemos o amor de Deus, para ser nosso modelo de santidade e para nos tornar participantes da natureza divina (cf. CIC, 457-460). Jesus veio como vítima de expiação pelos nossos pecados (cf. 1Jo 4,10), como Salvador do mundo (cf. 1Jo 4,14), para tirar os pecados (cf. 1Jo 3,5). Conhecendo-O, tenhamos a possibilidade de vivermos por Ele (cf. 1Jo 4,9) e conquistarmos a vida eterna (cf. Jo 3,16). Por meio de Sua encarnação, realizou o chamado “divino comércio”, no sentido de que, sendo Deus fez-se homem, para nos tornar participantes de Sua natureza, isto é, fez humano, para nos tornar divinos (cf. 2Pd 1,4).
Um forte e carinhoso abraço.
Feliz Natal!
Carta 04: A verdade sobre o Pentecostes
Pe. José Erinaldo
Num primeiro momento, o Pentecostes era apenas uma festa agrícola, precisamente uma festa de colheita, marcadamente alegre (Is 9,2) e de ação de graças (cf. Dt 16,9). Era também chamada de festa das semanas ou das tendas. Mais tarde, Israel vai celebrar também, nesse dia, o dom da Lei, a Aliança de com por meio de Moisés. No Novo Testamento, Pentecostes passou a celebrar o dom maior da Páscoa: o derramamento do Espírito sobre a Igreja de Jesus Cristo. O Espírito de Cristo tornou-se o Espírito de Sua Igreja, o Espírito da Cabeça, neste dia, foi dado também ao Corpo.
No dia de Pentecostes, a promessa feita por Jesus foi realizada, e cumpriu-se, ainda, as profecias do Antigo Testamento. O Espírito veio atuar na missão evangelizadora e na vida da Igreja. Ele impulsiona o anúncio da Boa Notícia e fortalece os Apóstolos no testemunho do Nome de Jesus, o Filho de Deus, Senhor glorioso, e Aquele pelo qual se deu a salvação da humanidade. Pelo Espírito se dá a nova criação, a nova história e a plena união entre a Cabeça (Cristo) e o Corpo (Igreja): o Espírito da Cabeça tornou-se a “Alma” do Corpo.
No Pentecostes, o Espírito universalizou a Igreja e sua missão, tornou Cristo universal e conduziu a unidade na pluralidade de línguas, raças e culturas. Esse acontecimento apresenta dois critérios de autenticidade: o doutrinal: confissão pascal da fé (professar Jesus Cristo como Senhor absoluto, o que só é possível pela ação do Espírito Santo – 1Cor 12,3b); e o comunitário: todo carisma a serviço do bem comum na comunidade (cf. 1Cor 12,7; cf. LG 12,2).
I.1 – Sentido do acontecimento
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Efusão escatológica do Espírito – Citando o profeta Joel (3,1-5: "Depois disso, acontecerá que derramarei o meu Espírito sobre todo ser vivo: vossos filhos e vossas filhas profetizarão; vossos anciãos terão sonhos, e vossos jovens terão visões. Naqueles dias, derramarei também o meu Espírito sobre os escravos e as escravas..."), Pedro mostra que Pentecostes cumpriu as promessas de Deus: nos últimos tempos, o Espírito seria dado a todos (cf. Ez 36,27). O precursor anunciara já ter chegado aquele que deveria batizar no Espírito Santo (Mc 1,8). E Jesus, após sua ressurreição, tinha confirmado essas promessas: ‘Em poucos dias, sereis batizados no Espírito Santo’ (At 1,5).
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Coroação da Páscoa de Cristo – Segundo a catequese primitiva, o Cristo, morto, ressuscitado e exaltado à direita do Pai completa sua obra derramando o Espírito sobre a comunidade apostólica (At 2,23-33). Pentecostes é a plenitude da Páscoa.
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Congrega-se a comunidade messiânica – Os profetas anunciavam que os dispersos seriam reunidos na montanha de Sião e assim a assembleia de Israel estaria unida em torno de Javé; Pentecostes realiza em Jerusalém a unidade espiritual dos judeus e dos prosélitos de todas as nações; dóceis ao ensinamento dos Apóstolos, eles comungam no amor fraterno à mesa eucarística (At 2,42ss).
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Comunidade aberta a todos os povos – O Espírito é dado visando um testemunho a ser levado até as extremidades da terra (At 1,8); o milagre de audição realça que a primeira comunidade messiânica se estende a todos os povos (At 2,5-11). O ‘Pentecostes dos pagãos’ (At 10,44ss) vem a demonstrá-lo cabalmente. A divisão que ocorreu em Babel (Gn 11,1-9) encontra aqui a sua antítese e seu fim.
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Começo da missão – O Pentecostes que congrega a comunidade messiânica também é o ponto de partida de sua missão: o discurso de Pedro, ‘em pé com os Onze’ (At 2,14), é o primeiro ato da missão dada por Jesus: ‘Ireis receber uma força, o Espírito Santo (...). Sereis então minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, e até nos confins do mundo’ (At 1,8).
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Uma nova criação - Jo 20,22a “… o gesto é um símbolo conhecido no AT e exprime bem a ideia de criação renovada. Aparece na criação de Adão (Gn 2,7): ‘Então o Senhor Deus modelou o homem e soprou nas suas narinas um sopro de vida e o homem tornou-se um ser vivente’ (cf. Sb 15,11). E na grande visão de Ez 37 (uma comunidade de mortos, Israel, torna-se finalmente uma comunidade de viventes), lemos: ‘Disse o Senhor Deus: Espírito, vem dos quarto ventos e sopra sobre estes mortos para que voltem à vida’ (37,9). Só este Espírito de Deus é capaz de recriar o homem e de arrancá-lo do pecado (cf. Ez 36,26-27; Sl 51,12-13). Como no Pentecostes lucano (At 2,1-11) também aqui o Espírito recria a comunidade dos apóstolos e a abre à missão. Mas, com maior precisão que Lc, Jo afirma que o Espírito é dom de Cristo: Recebei o Espírito Santo. O Espírito vem do ‘sopro’ – em hebraico, é a mesma palavra – do Cristo ressuscitado e o pensamento vai à cruz (19,30.34), da qual jorra exatamente a água do Espírito. É o dom da hora e da glorificação. O tempo indicado por ‘ainda não’ em 7,39 é agora cumprido, assim como a condição expressa nos discursos de despedida: a volta de Jesus ao Pai (16,7)”[1].
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Dom de Cristo para configurar ao mesmo Cristo. Importante ressaltar que a Igreja vive no Pentecostes.
Os Santos Padres compararam este ‘batismo no Espírito Santo’, uma espécie de investidura apostólica da Igreja, ao batismo de Jesus, teofania solene no começo de seu ministério público. Eles mostram que em Pentecostes foi dada a nova Lei à Igreja (cf. Jr 31,33; Ez 36,27), e feita a nova criação (cf. Gn 1,2): esses temas não estão expressos em At 2, mas se fundamentam na realidade (a ação interior do Espírito e a recriação que ele concretiza).
São Basílio observa que "as almas portadoras do Espírito, iluminadas por ele, tornaram-se elas também espirituais e propagam a graça. Daí as consequências:
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a previsão do futuro;
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a inteligência dos mistérios;
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a percepção das coisas ocultas;
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a distribuição dos carismas;
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a cidadania celeste;
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o canto em coro com os anjos;
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a alegria interminável;
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a habitação junto de Deus;
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a semelhança com Deus;
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o anelo supremo: tornar-se Deus" [2]
I.2 – Pentecostes, mistério de salvação
Se o aspecto exterior da teofania foi passageiro, o dom feito á Igreja é definitiva. Pentecostes inaugural o tempo da Igreja que, na sua peregrinação ao encontra do Senhor, constantemente dele recebe o Espírito que a congrega na fé e na caridade, a santifica e a envia em missão. Os Atos, ‘evangelho do Espírito Santo’, revelam a atualidade permanente desse dom, o carisma por excelência, tanto pelo papel que o Espírito tem na direção e na atividade missionária da Igreja (At 4,8; 13,2; 15,28; 16,6), como por suas manifestações mais visíveis (4,31; 10,44ss). O dom do Espírito caracteriza os ‘últimos tempos’, período que começa com a ‘Ascensão e terá sua consumação no último dia, quando o Senhor voltar”[3].
“A narração de Pentecostes em João apresenta-nos interpretação análoga (à de Lucas), embora em contexto teológico diferente. Nele há vinculação muito estreita entre a cena da crucifixão, com a ‘entrega do Espírito’ por parte de Jesus moribundo (19,30) e a saída de sangue e água do lado transpassado do Senhor (19,34), e ainda a cena da aparição de Jesus ressuscitado, com os sinais glorificados da paixão, no meio dos apóstolos. Para Jo, a cena do tornar-se presente ressuscitado entre os seus é outra face, o fruto, da cena da crucifixão e da morte. O Ressuscitado chega, fazendo-se presente em meio à comunidade: pelos verbos usados (élthen e éste), o quarto evangelho parece querer sugerir que Jesus se torna presente, não percorrendo um espaços, porém, sim, mostrando-se no centro da comunidade ele é seu coração, a fonte perene de vida. O mostrar as mãos e o lado enfatiza que se perpetua nele o acontecimento pascal de morte e ressurreição, pelo que ele é para sempre: o Crucificado-Ressuscitado, de cujo lado, no Espírito, brotam o sangue e a água, vida e alimento da comunidade nova. O pousar do Espírito sobre os apóstolos por obra de Jesus realça que o Ressuscitado é a fonte do Espírito ‘sem medida’. A cena reflete, de um lado, a do Gn (Deus que sopra seu alento nas narinas do homem: Pentecostes é a criação consumada; de outro lado com a referência à paz dada por Cristo e o envoi para a remissão dos pecados, recorda a salvação plenamente realizada que deve ser comunicada a todas as nações”[4].
Atos 2,1-13
“a efusão do Espírito Santo na festa de Pentecostes cumpre a promessa de Jesus – Mas vós recebereis a força do Espírito que descerá sobre vós… (1,8) – e inaugural oficialmente o tempo da Igreja. Os doze apóstolos, cujo número simbólico há pouco foi reconstituído, junto com o primeiro núcleo de comunidades, estão habilitados com a força do Espírito para o anúncio autorizado da salvação, dom de Deus por meio de Jesus. Com a efusão do Espírito nasce a comunidade prometida pelos profetas para o tempo final. Todos estes temas são sugeridos pelo relato lucano, que retoma os fragmentos de antigas tradições da comunidade judeu-cristã e que os relê, segundo a particular perspectiva teológica que o baliza, ao escrever a história da expansão da primeiro Igreja. Numa primeira visão panorâmica, Aparece a articulação externa do relato: introdução (2,1), que refere as circunstâncias de tempo e o lugar do acontecimento ou experiência do Espírito; a cena teofânica ou manifestação divina do Espírito através de dois símbolos clássicos das teofanias, o vento (ou tempestade) e o fogo (2,2-3); segue a descrição do primeiro efeito do Espírito, a reação das testemunhas do mundo humano universal: o falar em ‘outras línguas’ suscita assombro, admiração (2,4-8); a universalidade e o ecumenismo, nos quais se inserem a ação e o testemunha do Espírito, são expressos pela lista dos povos (2,9-11). O núcleo da nova humanidade reunida pela força de coesão e de comunicação que tem a sua fonte no Espírito. O relato encerra-se com duas notas redacionais. A primeiro retoma o tema do assombro e a interrogação dos judeus: qual o sentido da experiência do Espírito? Sem a interpretação que une a manifestação do Espírito à história da salvação e ao acontecimento da morte e ressurreição de Jesus, ela fica ambígua (2,12-13). Assim, Lucas criou o pressuposto para a intervenção esclarecedora e a interpretação autêntica dada no primeiro discursos de Pedro.
II. Do Pentecostes hebraico ao cristão
Lc já nos fez entender que não se pode ser espectador neutro ou exterior da experiência do Espírito. Esta fica sendo um fenômeno absurdo e irracional, até que não se entre na lógica da ação gratuita e poderosa de Deus, que transforma o homem a partir de dentro e o faz capaz de estabelecer relações novas com os outros homens. Ora, para exprimir esta realidade da ação livre e inovadora de Deus, a tradição cristã tinha à disposição a linguagem e os símbolos religiosos das narrativas bíblicas, nas quais Deus intervém na história humana. A manifestação clássica de Deus é a do Êxodo, culminando no Sinai com a constituição do povo de Deus sobre a base das dez palavras ou decálogo. Em alguns ambientes sacerdotais judaicas, assumindo um significado novo: era a festa comemorativa da aliança no Sinai. Depois da destruição do templo em 70 d.C., também a corrente farisaica deu um novo conteúdo religioso à antiga celebração bíblica chamada de ‘festa das semanas’, hag shabu’ot ou das primícias da colheita (Ex 34,22), que se celebrava sete semanas após a páscoa. Sob a influência da teologia farisaica, que tendia a inculcar a observância da lei, comemorava-se no Pentecostes o dom da lei. As antigas versões litúrgicas, os targumim, e os comentários judaicas antigos releem o acontecimento do Sinai nesta perspectiva: aos pés do Sinai é convocado o povo de Israel, o povo de Deus, junto com todos os povos para receber a lei. A acolhida da lei é a condição de vida para a comunidade renovada e santa.
É provável que, primeiro, a tradição cristã e, posteriormente, a reflexão teológica de Lucas tenham retomado alguns destes motivos, para apresentar o nascimento e a fundação da nova comunidade messiânica ou cristã. O fato de ter situado a ascensão do Senhor quarenta dias após a páscoa oferecia a Lucas a ocasião para dar uma localização cronológica e litúrgica ao dom do Espírito no contexto da festa chamada pelos autores judeus de língua grega pentekostê ‘quinquagésimo’ (dia) (cf. Tb 2,1; 2Mc 12,32).
O texto grego da frase de introdução tem a solenidade do estilo bíblica e recorda o vocabulário caro a Lucas. Literalmente deveria ser traduzido assim: ‘No completar-se, symplêrousthai, o dia de pentecostes…’ onde há uma velada alusão ao cumprimento de uma história de promessas que alcança o seu vértice ou momento crítico (cf. Lc 9,51). A assembleia cristã que aguarda o Espírito é caracterizada pela unidade: todos estão reunidos no mesmo lugar. Tendo-se presente o modelo literário e espiritual ao qual se refere a cena de pentecostes, na expressão ‘todos’ devem estar incluídos os 120 discípulos reunidos ao redor dos doze com as mulheres e os irmãos de Jesus. A assembleia do povo de Deus que no Sinai esperava com um só coração o dom da lei, segundo a tradição judaicas, era constituída por ‘todos’, isto é, homens e mulheres (cf. Filo). Assim, agora, a nova assembleia de Deus que espera o dom do Espírito é unida e concorde, sem discriminações e exclusões.
A experiência do Espírito. Lucas descreve a experiência do Espírito utilizando os símbolos clássicos da ação poderosa e soberana de Deus: o vento e o fogo. O Espírito é um dom de Deus, vem do ‘céu’, não é um produto da sugestão humana. É uma força irresistível que foge ao controle e às manipulações humanas. Ao intelectual e teólogo judeu Nicodemos que quer saber ‘como’ age Deus, Jesus diz: ‘O vento sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai; assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito’ (Jo 3,8). A irrupção do Espírito que pervade cada pessoa com a sua ação única e singular é visibilizada por Lucas com a imagem das línguas de fogo que se dividiam e pousavam sobre cada um deles (2,3). A ação interior e transformadora do Espírito torna-se externamente uma nova capacidade de comunicação: começaram a falar outras línguas (2,4). Esta imagem das línguas de fogo para exprimir a ação de Deus foi sugerida, com toda a probabilidade, pela tradição judaicas a respeito do dom da lei ou palavra de Deus no Sinai. Segundo esta tradição, já testemunhada por Filo e pelas antigas versões litúrgicas, targumim, a voz de Deus dividiu-se em mais línguas (Tg Dt 33,2), em 70 línguas até, para que todas as nações pudessem compreender. O que Lucas quer realçar, retomando estes motivos da antiga tradição, é a universalidade que caracteriza o tempo do Espírito e a habilitação profética do novo povo. Muito mais que os antigos líderes, Moisés e Aarão, ou que os profetas chamados por Deus, os membros do novo povo messiânico podem proclamar com autoridade e força o que Deus fez pela salvação de todos os homens, isto é, as grandes obras de Deus (2,11). O que fundamenta a identidade do novo povo não é a lei divina, nem uma revelação codificável num ensinamento, mas a presença e a ação de Deus mediante o seu Espírito. Este é o tempo sonhado pelos profetas e aguardado pela esperança judaicas: o dom do Espírito fará com que a lei penetre nas consciências e mude o íntimo do homem (cf. Jr 31,31-34; Ez 36,25-28).
A nova humanidade. Depois de ter apresentado os protagonistas do novo povo, habilitados pelo Espírito para dar um testemunha autorizado e corajoso, Lucas apresentar os destinatários: os representantes do mundo judaico disperses entre todos os povos. Trata-se de judeus piedosos que, como os velhos Simeão e Ana, vieram viver na cidade de Jerusalém na expectativa da libertação messiânica, para concluir na cidade santa os seus últimos dias. Cada nação do mundo, diz Lc, é convocado a Jerusalém para ser testemunha da nova época histórica que se abre com a efusão do Espírito. O leitor encontra uma confirmação da universalidade geográfica e étnica na lista de povos que Lucas acrescenta à afirmação geral. Elencos análogos são encontrados na tradição bíblica (cf. Gn 10) e também nos escritores helenistas. Quem acompanha, pela carta geográfica antiga, o elenco das nações ou dos povos, identifica uma linha direcional que vai de leste a oeste e de norte a sul, partindo dos longínquos e antigos povos da Mesopotâmia através da Ásia menor, o Egito até Roma, centro do império e ponto de chegada da missão cristã segundo o plano de Atos. A menção à Judeia depois da Mesopotâmia interrompe esta linha ideal. As duas últimas populações, cretenses e árabes, também ficam for a do esquema. A ordem se recompõe se nestes dois nomes se vir uma nota resumidora de caráter universalista que se poderia assim traduzir: povos da terra firme (árabes) e das costas/ilhas (cretenses), isto é, os povos de toda a parte do mundo habitado (cf. 2,5).
Aparece claramente o horizonte universal e ecumênico do novo povo mobilizado pela força unificante do Espírito. Poder-se-ia ver neste elenco de povos, reunidos para escutar a voz do Espírito na própria língua nativa, uma referência à dispersão dos povos e à confusão das línguas depois de Babel (Gn 11,1-9). A humanidade, dispersa e dividida depois da tentativa de construir um imperialismo religioso-político, é reunida pela força do Espírito que unifica os diferentes grupos humanos, respeitando e promovendo as características culturais, das quais a língua é expressão. Nem a força ou a repressão, nem a planificação econômica ou política podem assegurar a unidade dos povos ou dos grupos humanos, mas sim o poder interior do Espírito, que promove com a liberdade e o amor novas relações e cria espaços alternativos de comunicação.
Neste prisma pode-se intuir a interpretação que Lucas dá à experiência do Espírito que se exterioriza no falar outras línguas e no entendimento na própria língua nativa. Ele relê este fenômeno por meio de dois modelos interpretativos: o falar inspirado e comovido dos carismáticos, chamado glossolalia, do qual há exemplos nas comunidades cristãs de origem paulina (cf. 1Cor 12,10; 14) e nas experiências carismáticas de Atos (cf. 10,46-47; 11,15-17; 19,6) e o modelo da comunicação nas línguas dos diferentes povos. Esta última interpretação, sugerida pela antiga tradição judaica a respeito do dom da lei no Sinai, é institucionalizada por Lucas, porque lhe permite ressaltar a dimensão universal da ação do Espírito. Mas ‘falar em outras línguas’, seja como for interpretado, será um sinal de que, como todos os sinais religiosos, apela para a tomada de posição do homem: acolhida ou recusa. Em outras palavras, o acontecimento de Pentecostes não é um espetáculo que torne evidente a ação de Deus ou o Espírito. Esta ação de Deus que se manifesta nos homens por ela transformados faz surgir uma pergunta: o que significa isto? O autor por três vezes repete esta pergunta, suscitada pela confusão, assombro e admiração (2,7.8.12). A fé não é resposta a uma curiosidade cultural, não se nutre de emoções religiosos, mesmo que possa partir das interrogações humanas suscitadas pelo novo e inexplicável. A abertura e a busca sincera são um primeiro passo para a acolhida da Palavra e do Espírito. A conclusão apressada de quem não esta disposto a acolher o novo e o diferente passa pelos esquemas estereotipados e tem a resposta pronta: estão tomados pelo vinho doce!
Lucas nos apresentou dois comportamentos possíveis diante dos ‘sinais’ do Espírito. A palavra de Pedro no discursos que se segue desmascara os falsos álibis de quem tem medo no novo e amadurece a pergunta de quem esta aberto para a decisão da fé”[5].
João e Lucas
“Jo colocou a efusão do Espírito no dia da Páscoa para ensinar-nos que o Espírito é dom do Ressuscitado.
Lucas: no contexto da festa de Pentecostes, que era uma festa judaica muito antiga, celebrada cinquenta dias depois da Páscoa: comemorava a chegada do povo de Israel ao monte Sinai… Moisés tinha subido à montanha, tinha-se encontrados com Deus e recebido a Lei para ser transmitida ao seu povo. Os israelitas sentiam-se muito orgulhosos por esse dom: afirmavam que, antes que a eles, Deus tinha apresentado sua Lei a outros povos, que, porém, a tinham recusado, preferindo seus vícios e desregramentos a uma vida pessoal e social digna de homens. Para agradecer a Deus por essa predileção, os israelitas tinham estabelecido uma festa: o Pentecostes.
Ao afirmar que o Espírito tinha descido sobre os discípulos justamente no dia de Pentecostes, Lucas nos quis ensinar só uma coisa: que o Espírito tinha substituído a Lei antiga e se tornara a nova Lei para o cristão (…). Eis o que é a Lei do Espírito: é o coração novo, é a vida de Deus que, quando penetra no ser humano o transforma e, de sarça que era, se torna uma árvore frutífera, que produz naturalmente as obras de Deus. Quando o homem é permeado pelo Espírito, nele acontece algo de inaudito: ama com o mesmo amor de Deus. A partir daquele instante ‘já não precisa de ninguém para ensiná-lo’ (1Jo 2,27), já não precisa de lei alguma.
João chega até a dizer que o homem animado pelo Espírito é simplesmente incapaz de pecar: ‘Todo o que é nascido de Deus, não peca, porque o germe divino reside nele e não pode pecar porque nasceu de Deus’ (1Jo 3,9).
Nos Atos, Lucas não tem como objetivo fornecer-nos uma informação cronológica: quer somente fazer-nos compreender que o cristão tem como sua única lei o Espírito”[6].
III. Perspectiva dogmática sobre a identidade trinitária do Espírito pentecostal
Duas dialéticas fundamentais que atravessam o dom e a manifestação escatológica do Espírito Santo:
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A primeira dialética se refere à relação entre a revelação plena da identidade do Espírito Santo e o cumprimento da obra da salvação do homem como unidade, isto é, como Igreja. O dado teológico fundamental que se deduz do acontecimento pentecostal é, na verdade, que somente a partir do acontecimento pascal, isto é, da morte de Cristo como retorno seu ao Pai, tornam-se possíveis ao mesmo tempo a manifestação Espírito Santo como realidade distinta do Pai e do Filho encarnado (isto é, como pessoa, segundo a terminologia da definição dogmática posterior) e, em consequência, a plenitude de sua obra de salvação e definição nos homens. Tal como o Pai se torna ‘visível’ no Filho feito carne, revelando-o como pessoa distinta dele, assim o Filho dá o Espírito, como pessoa distinta dele, só no momento em que volta ao Pai, deixando espaços – por assim dizer – para o Espírito. Desta maneira se manifesta o Ser trinitário de Deus: a distinção e a unidade do Três. Como consequência, justamente porque foi dado e revelado em plenitude, o Espírito pode comunicar aos homens o que é mais próprio do Ser de Deus: sua própria vida divina (cf. 2Pd 1,4), tornando-os filhos no Filho uma só coisa nele, assim como ele é um com o Pai (cf. Jo 17,21-22). Nesta perspectiva, insere-se outrossim em realce a ‘função’ criativo-salvífica do Espírito, que – parafraseando W. Kasper – é ao mesmo tempo ‘o íntimo’ de Deus (a manifestação de sua ‘glória’ como unidade da vida divina) e seu ‘extremo’ (a livre e gratuita participação da mesma na criação por meio do homem, em Cristo).
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A segunda dialética refere-se exatamente à manifestação da identidade pessoal do Espírito Santo. No momento em que se revela plenamente no Pentecostes, oculta-se também da maneira mais profunda: daquele que a teologia ortodoxa definirá como a ‘kénosis’ do Espírito Santo. E isto porque a identidade pessoal do Espírito Santo é – em nível ‘intratrinitário manifestar o Pai no Filho e o Filho no Pai; e – em nível histórico-salvífico – introduzir as criaturas humanas na mesma relação de amor e de unidade que transcorre entre o Pai e o Filho. Neste sentido, finalmente, é mister ler teologicamente a relação entre Maria e o Espírito Santo: Maria é o ícone da humanidade que foi feita filha de Deus no Filho, unificada e divinizada e, por conseguinte, é em seu rosto que brilha a glória do Espírito de Pentecostes”[7].
IV. O Espírito como um desconhecido – motivos[8]:
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Falta de formação e catequese antes e depois dos sacramentos de iniciação cristã, especialmente batismo e crisma que nos tornam ‘templos do Espírito Santo’. Acrescenta-se a isso a ignorância bíblica da ação do Espírito de Deus no AT, na pessoa e vida de Jesus e na história da comunidade cristã apostólica e posterior.
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Inexperiência vivencial de sua presença e ação em nossa própria vida pessoal, devido a um pobre nível de fé e vitalidade cristã. Uma expressão disto mesmo são as brincadeiras frequentes de mau gosto sobre a assistência do Espírito nas pessoa e organismos oficiais da Igreja: conclaves, concílios, papa, cardeais, congregações romanas e Bispos.
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Abuso das supostas aplicações de sua eficácia mecânica e atuação quase mágica nos sacramentos, nas palavras, na autoridade eclesial e no âmbito religioso e espiritual. Assim, alguns o identificam quase que exclusivamente com os carismas extraordinários, às vezes raros, dos santos; ou, o que é pior, com inspirações individuais, discutíveis, emoções extravagantes ou entusiasmos exaltados.
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A própria dificuldade que em si mesma encerra a compreensão dos símbolos, imagens e expressões que, por carência de vocábulos e definições precisas, se aplicam nas Escrituras aos sinais da presença e ação do Espírito. Tais como: vento, fogo, línguas e dons, Espírito de adoção e de liberdade etc.
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O Vento e o fogo. Sinal presente em todas as teofanias bíblicas; também em Pentecostes, conforme São Lc, nos Atos. O Espírito é vento impetuoso ou aragem que percorre a terra com a força do Alto.
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Água viva que apaga a sede; assim o chamou Jesus (Jo 7,38). A água significa tanto o Espírito como o batismo (3,5;1Jo 5,8).
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Defensor, advogado e consolador. No discursos de despedida Jesus prometeu repetidas vezes a seus discípulos a assistência do Espírito para depois de sua partida (Jo 14,16-26).
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A vocação e inspiração dos profetas (Is 61,1; Ez 11,5) e a unção dos reis (1Sm 16,13) no AT são efeito do Espírito de Deus que cria e sustenta todos os seres viventes e repovoa a face da terra (Sl 103).
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Seus sete dons, baseado no texto de Is (11,2), onde lemos que sobre o Messias irá pousar o Espírito do Senhor, são: Sabedoria e inteligência, conselho e fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus. São os mesmos dons que o Bispo pede para os crismandos com a imposição das mãos (Ritual da Crisma): e que imploramos do Espírito na bela Sequência de Pentecostes.
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Os frutos do Espírito, em contraposição às obras da carne, são: amor, alegria, paz, compreensão, delicadeza, bondade, lealdade, amabilidade e domínio de si mesmo (Gl 5,22-23).
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V. É a hora do Espírito
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Na Igreja
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Protagonismo decisivo do Espírito Santo na renovação da Igreja e sua missão evangelizadora do mundo.
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Renovação carismáticas católica.
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Comunidade de vida e de aliança.
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Movimentos e eventos internacionais de cunho renovado.
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Função do Espírito: rejuvenescimento da Igreja (LG 4).
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É perceptível o sopro do Espírito nos constantes Movimentos que de um ou outro modo vivificam a Igreja, tais como: comunidades paroquiais, cursilhos, equipes de casais, focolare, grupos de oração e ecumenismo; somem-se a isso os institutos de vida consagra, tanto seculares como religiosos, as Ordens religiosas, as Congregações e as sociedades de vida apostólicas.
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A educação presente na Igreja doméstica pelos pais.
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As pastorais e Movimentos paroquiais.
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E fora da Igreja
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O Espírito atua também no mundo a salvação de Cristo destinada a todo ser humano: lutar pela paz, pela vida, pela justice, pela libertação integral, pelo bem cultural, pela ecologia, pelo desenvolvimento pleno de todos, pela fraternidade etc.
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(Atua na vida dos que não chegaram ao conhecimento de Jesus Cristo, estimulando-os na prática das virtudes humanas e na vivência da verdade).
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[1] X. Léon-Dufour, Vocabulário de Teologia Bíblica, São Paulo 2005, 758-760.
[2]Basílio de Cesareia. Tratado sobre o Espírito Santo. Paulus, São Paulo 1999.
[3] R. Fabris – B. Maggioni, Os Evangelhos (II), São Paulo 1992, 486.
[4] X. Pikaza – N. Silanes, Dicionário Teológico o Deus Cristão, São Paulo 1998, 689-690.
[5] R. Fabris, Os Atos dos Apóstolos, São Paulo 1991, 59-64.
[6] F. Armellini, Celebrando a Palavra (Ano C), São Paulo 1998, 198-201.
[7] X. Pikaza – N. Silanes, Dicionário Teológico o Deus Cristão, 692-693.
[8] B. Caballero, Nas Fontes da Palavra (Ano B), 142-145.
Carta 03: Novas heresias
Pe. José Erinaldo
Vivemos dias de lutas, fracassos, desenganos e falta de sentido em muitos. Alguns buscam a verdade; outros interessam-se pela deturpação dos valores; outros ainda trilham estradas ambíguas, protegendo uma imagem falsamente construída em pilares de barro; muitos outros, de diversas instituições, subordinam a Moral aos costumes pagãos; uma multidão, por insatisfações doutrinárias, segue padrões da lógica de uma mundo desorientado; e, finalmente, é preocupante o número daqueles que procuram justificar seus interesses insanos por meios contraditórios, falaciosos e convincentes aos incautos.
Assoberbam-se as confusões entre o entendimento sobre a dedicação aos pobres e a questão do pecado. É assombroso o número de pessoas que se colocam do lado do pecador, mas sem ser-lhe um sinal da misericordiosa ação de Deus em favor de sua libertação total, opondo-se ao cuidado com a conversão do outro. Há um claro desinteresse pela transformação espiritual do pecador. Evidencia-s, um tipo de preocupação puramente materialista. O lastimável de tudo isso, é que se definem “católicos”, defensores da vida. Mas que vida? Estão querendo contradizer o Evangelho? Afinal, diz a Palavra de Deus: “Quem quiser salvar sua vida vai perdê-la” (Mt 16,25). Existe uma importante definição de fé no Credo da Igreja: “Creio na Vida Eterna”. Quem é católico conhece sua fé, professa-a dignamente e a tem no seu coração. Partindo desse princípio, não admitirá, jamais, qualquer modificação substancial na doutrina querida pelo próprio Jesus Cristo, alimento de Vida Eterna (cf. Jo 6,54). Outros exemplos esclarecedores dessa doutrina podem ser vistos em Jo 3,16: “De tal modo Deus amou o mundo, que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna”; Jo 10,28: “Eu dou a elas (ovelhas) a vida eterna”; 1Jo 5,11.13: “E nisto consiste o testemunho: Deus nos deu a vida eterna, e esta vida está em seu Filho (...). Eu vos escrevo estas coisas, a vós que credes no nome do Filho de Deus, para que saibais que tendes a vida eterna”. Há, portanto, muitas outras citações, revelando o quão é necessário ao homem deter-se na vida que vale a pena, aquilo que para ele será uma eternidade de existência, não fiando-se nas muletas de uma realidade passageira, frágil e repleta de desilusões e fadigas. Quem a esta vida terrena se apega da morte eterna não escapará.
Uma realidade de incertezas facilmente pode ser invadida pelos pseudo-formadores de opinião e amigos da fama e do sucesso financeiro, de modo a não mais ser possível enxergar ervas daninhas no meio da lavoura. Quero dizer com isso que não se pode inserir num ambiente de fé nem pessoas de confissões diferente nem muito menos suas ideias, nem os da mesma instituição, mas com objetivos diversos daqueles constitutivos da realidade que compõem. Quando sucede de surgir realidade parecida, isso denota “cegueira” profunda, inimizade com o próprio corpo. Por essa trilha feroz, muitos dos já batizados não somente enveredaram como também ensinaram-na, contrariando o patrimônio de FÉ e MORAL da Igreja. Exemplos claros abundam-se em livros, revistas, mídias sociais e discursos falaciosos em diversas ocasiões. Para justificar seus ideais rasteiros, são capazes de jogar com aparentes palavras pacificadoras, malabarismos intencionais de desequilíbrios pessoais projetados nos que jamais abandonam o leme da verdadeira transformação interior à luz da Palavra de Deus e da Doutrina da Igreja.
Com significativa frequência, ouve-se um ou outro afirmando que nas atuais circunstâncias, abundam incompreensões, desestabilidade institucional e desprezo pelo diálogo. De fato, isso é sinal de perda de rumo, desorientação fiducial, relativismo encantador e indiferença profunda dentro da própria casa. A questão que insiste continuamente é a de como ser possível dialogar com quem não se importa com a verdade. Há uma cobrança e uma divulgação preocupante por parte de quem teima em se manter na contramão de uma autêntica teologia bíblica e doutrinária, apelando cegamente para uma mentalidade sócio-política não vislumbrada pelo Evangelho. Distancia-se mais ainda, quando já não se coloca Cristo na centralidade da vida de fé, mas tão somente suas obras, utilizando-as como justificativas de interesses ficticiamente pacíficos, ilusórios e enganadores.
No âmbito da desconstrução bíblico-doutrinária, pululam narrativas pseudo teológicas sobre o favorecimento da mais antiga mentalidade do homem desligado de Deus e, consequentemente, preso a si mesmo, realizando o triste combate a favor da satisfação de todas suas vontades segundo a carne. Aqueles que se dizem “teólogos” dessa mentalidade, não suportam a figura paterna de Deus, a humildade e a simplicidade da Virgem Maria e seu modo de vida como Serva do Senhor; desprezam veementemente a literatura da vida dos santos, que se fizeram servos do Servo e não temeram a morte de suas vontades, a fim de viverem segundo a Vontade de Deus. Por outro lado, alargam-se em louvores a Eva, pelo fato de ter sido capaz de “enfrentar” Deus e seguir seus interesses, seguindo “livremente” por outra estrada. Esse deve ser o mais “autêntico” modo de atitude, segundo eles, para as pobremente definidas como “feministas”, iludidas e desorientadas no tempo, no espaço e na fé. Outra figura significativa para esses “teólogos” é o da “pachamama”, designada como “Mãe Terra”, deusa andina da fertilidade. Esses adoradores da natureza, desprezam o avanço teológico de Israel mediante revelação divina, prostituindo-se com o retorno da religião pagã da serpente, atualmente contemplada na nova mãe dessa gente, que não consegue ver na Virgem Maria, a Mãe de Deus, legítima, real, concreta, toda pura, totalmente agraciada, criada para ser a Mãe do Verbo feito carne, a Arca da Nova e Eterna Aliança e a Nova Eva da nova humanidade. Ao negar a beleza da renúncia de si mesmo, para viver somente de Deus, tais figuras bizarras tendem, necessariamente, para o mais baixo nível possível do mistério da iniquidade, manifestando intrépido estímulo ao muito antigo ato de promiscuidade contra a própria natureza em todas as suas mais variadas formas e expressões. O fenômeno LGBT+ tem sido uma das questões mais favorecidas por esses “teólogos” de beira de riacho. Além disso, são defensores assíduos da famigerada ideologia de gênero e da inominável prática do aborto. Por fim, não suportam a família como descrita na Sagrada Escritura, detestam a masculinidade, odeiam o patriarcado bíblico e a paternidade de Deus. Ou seja, a título de leve conclusão: não são teólogos, mas tão somente pessoas de mentalidade desprezível e desumanizadora.
Nas entrelinhas de muitas narrativas de pseudo-teólogos atuais, encontram-se, como já vimos acima, sutis referências à negação de Deus como Pai, a Jesus Cristo como Centro da vida cristã, sendo substituído pela utilização de suas obras em contextos jamais aceitos por Ele segundo a realidade do Evangelho, e ao Espírito Santo, negando-O como Aquele que configura a Cristo para a glória de Deus e também como Aquele que promove a santificação e a entrega pessoal à vontade de Deus. Um caso extremamente importante para todos os cristãos é, também, o já supracitado: da Virgem Maria, agraciada de modo pleno, e, por isso mesmo, toda à disposição do querer do Senhor de quem se fez Serva. Segundo esses ditos “teólogos”, o maior exemplo a ser seguido, especialmente pelas mulheres, é o de Eva, que contraria justamente a vontade superior e segue suas inclinações pessoais. Eles não têm nenhuma preocupação com a realização espiritual das pessoas, não ligam para a grande verdade sobre a Vida Eterna, o que, claramente, indica ateísmo prático. Deus não é, dentro da lógica deles, Aquele que está do “outro lado”, para além do tempo, mesmo agindo aqui, a espera de todos, mas tão somente um ser preocupado com a “libertação” social das pessoas, mesmo que estas tenham de renunciar a própria natureza ao aprovar o aborto e toda sorte de degradação humana. Essa ideia de Deus por eles concebida, está de braços abertos para todo e qualquer tipo de pessoa em qualquer tipo de situação. A esse pseudo-Supremo aborrece ser da verdade, interessado na conversão dos próprios pecados; e alegra-se com a “conversão social”, mesmo que alguém seja um pecador contumaz, ainda que pratique o aborto e viva desregradamente o sexto mandamento e não se importe com a Sagrada Escritura e a Doutrina da Igreja. Ou seja, os seguidores de Satanás estão criando seus “deuses” e seus objetivos “salvíficos” diferentes da Verdade, que é Cristo, e de seus Ensinamentos
O verdadeiro teólogo, portanto, é aquele que vive de joelhos, alimenta-se da Palavra de Deus, tem Jesus Cristo como sua razão absoluta de vida, possui ilibado amor à sua Igreja, não teme a verdade abraçada, pelo contrário, esforça-se cotidianamente para torná-la sempre mais evidente a todos; não inventa nada, estuda, ora e mantem-se fiel a Deus e à Esposa de Cristo. Sua vida é marcada pela liberdade dos filhos de Deus diante dos bens materiais, do poder e dos prazeres carnais. Ele tem uma visão de “águia”, enxerga todo e qualquer joio presente na comunidade de fé e nos arredores, antecipando-se aos problemas relacionados à salvação do povo de Deus pelo qual dá sua vida, se for possível.
Um forte e carinhoso abraço
Carta 02: Dar tudo para ser todo
Um primeiro ponto a ser desenvolvido aqui diz respeito à elite religiosa dominante de Israel que não pensava como Jesus. Muitos dos que dela faziam parte tornaram-se hipócritas e vaidosos, aproveitadores, corruptos e idólatras. Para Jesus, “gostam de andar com roupas compridas, de serem cumprimentados nas praças e dos banquetes; devoram as casas das viúvas e simulam longas orações” (Mc 12,38). De fato, eles têm uma mentalidade diferente daquela de Jesus, mas igual àquela do mundo sem Deus. Apesar de estarem na casa do Senhor e serem responsáveis pela fé do povo de Deus, agiam dominados pelos princípios exigidos pelo Diabo, os mesmos propostos a Jesus no deserto, mas absolutamente refutados pelo Filho de Deus.
As lideranças de Israel continuavam traindo o seu Deus, usando suas condições para enganar os inocentes, explorando-os, falsificando, ainda, a imagem de Deus, colocado como um “deus” dos ricos, bruto e cheio de ira, um “deus” sedento de sacrifícios, um ídolo a favor dos interesses dominantes, daqueles de aparência importante, ambiciosos, avarentos, vaidosos e hipócritas.
Jesus não quer seus discípulos com essas infames características. O modelo de vida dos discípulos não pertence ao mundo e não vem dele. Daí a imensa luta do que foi escolhido para largar as amarras mundanas, como interesses vis, prazeres desordenados, vícios, lógica dominadora, ausência de fraternidade, vaidades, hipocrisia e, como resultado final, idolatria. Trata-se de uma realidade ilusória, mas concretamente destruidora da pessoa humana. O grande desafio na vida de quem se propõe seguir Jesus é o da renúncia de si mesmo.
Um outro ponto é aquele dado pelos ricos no templo de Jerusalém. Eles são certamente judeus, participam das festas, fazem suas ofertas, mas são incapazes de agir com amor, com autenticidade e com desprendimento. A presença nos cultos, as manifestações de fé e as ofertas são apenas propagandas de si mesmos. Eles gostam de aplausos, honras, posição social e louvores; sentem-se bem quando dominam e são ovacionados e bajulados. Na qualidade de amigos de muitos da elite religiosa, envolviam-se nas mesmas formas desumanas e, por isso mesmo, antirreligiosa de ação, movidos desesperadamente pela vaidade que os caracterizava perfeitamente.
Jesus conhecia profundamente tal ilusão de vida. Ao preparar os Seus, tomando esses exemplos, ensina-lhes que a riqueza do mundo é fechamento ao Reino de Deus, é porta aberta ao inferno, é uma ilusão “poderosa” que conduz quem a possui ao abismo das próprias paixões indignas, à eliminação de si mesmo e à negação de Deus. Mesmo que seja um religioso, perde-se tudo, até mesmo a salvação. Essa lógica mundana não deve passar a nenhum dos escolhidos, nem sequer deve ser vislumbrada. Outra deve ser, portanto, a lógica para os filhos de Deus, “a lógica que desafia o mundo” (José Erinaldo, Ser Identificado com Cristo), o modo de viver como servos, livres e dedicados à salvação.
Num terceiro ponto, Jesus chama Seus discípulos e faze-os perceber uma pobre viúva (cf. Mc 12,42-44), uma mulher desvalorizada naquele contexto justamente por ser mulher, viúva e pobre, três categorias distantes de muitíssimos corações. Ali estando, foi vista por Jesus, mas continuou invisível aos olhos dos demais, porque os olhos se voltam na direção do coração. O mesmo acontece ainda hoje. Muitos são invisíveis a nós, porque enxergamos o que nos interessa e nos proporciona prazeres. Facilmente corremos atrás do que nos atrai. Jesus, ao contrário, vê o detalhe, observa cada gesto e cada atitude. Ele enxerga o coração, o mais íntimo de cada pessoa: sua alma. Ele vai aonde ninguém mais pode ir. Aquela pobre viúva tão desprestigiada, tão desassistida, tão sofrida e invisível, sabia de uma coisa: ser toda para Deus, que a conhecia. Ela só não sabia que o Deus por ela amado estava, de fato, próximo na Sua humanidade e prestando atenção em sua atitude e apresentando-a como exemplo a ser imitado. Observemos como Jesus apresenta as pessoas santas como modelos seguros de vida nova. A viúva não tem para quem aparecer e, no esconderijo do seu coração, oferta tudo o que possui, mesmo tendo a possibilidade da divisão, ficando com a metade, mas quis entregar tudo. Ao fazer isso, ela se entregou totalmente à Providência Divina, deixou-se conduzir exclusivamente pela vontade de Deus.
O gesto da viúva tornou-se uma lição para os discípulos e um sinal de confiança em Deus e, ainda, reflete o próprio Jesus, que foi todo para o Pai e todo para o bem da humanidade. Jesus está dizendo aos Seus discípulos que a lógica do Reino de Deus acabou de ser manifestada no gesto daquela viúva, que não tem riqueza material, hipocrisia, vaidade, idolatria, nada que seja para a destruição pessoal ou de outrem. O fato é que essa viúva estava no limite, como esteve no limite a viúva de Sarepta (cf. 1Rs 17,10-16), como esteve também no limite Abraão ao se posicionar para sacrificar seu único filho. Moisés também chegou ao seu limite quando se predispôs a atravessar o Mar Vermelho; e, por último, o próprio Jesus Cristo ao entregar Sua vida na cruz. Para todos que confiaram em Deus, a vitória foi alcançada, porque o Senhor não desiste daquele que Ele ama, não fecha Seus “ouvidos” aos que clamam por Ele, não vira as “costas” aos que O procuram.
Os discípulos não devem ter escórias, não devem criar raízes no paganismo, não devem se apegar a casa, província ou lugar qualquer, porque a pátria deles é o Céu. No mundo são estrangeiros, cidadãos do Reino dos Céus, homens e mulheres que tudo entregam para serem totalmente de Deus. São amantes da vida, da verdade, do amor, da fé, da esperança e da liberdade. Também são conscientes da dignidade de Deus e de cada homem. São pessoas do zelo e da ordem, da paz e da prudência. São servos, tendo como única riqueza: Jesus Cristo; única finalidade: a comunhão com Deus; único interesse: ser salvos e instrumentos de salvação para os outros; única casa: a Igreja do Deus vivo; único apego: não possuir nada nem ninguém: única lamentação: não terem se convertido mais cedo; única vaidade: esforçar-se para viver segundo o Espírito Santo para a glória de Deus Pai.
Com quem você se identifica? Aquilo com o que você se identifica diz quem você é.
Já se viu como hipócrita?
O que está fazendo para ser melhor?
Sabe diferenciar a lógica de Jesus Cristo da lógica do mundo?
Já pensou em servir só pelo prazer de fazer o bem?
Qual o empecilho na sua vida para não se entregar totalmente a Deus?
Por meio dos discípulos, Jesus se faz presente na história, e por onde passa um dos Seus até o deserto se torna OÁSIS das maravilhas de Deus.
Um forte e carinhoso abraço
Pe. José Erinaldo
Carta 01: Olhos fixos no Crucificado
Os momentos mais difíceis são também os mais fecundos. O esplendor do ouro aparece no meio do fogo. A pérola surge pela dor da ostra. A alegria de uma mãe vem depois da grande dor do parto. A vitória acontece depois de uma vida de sofrimentos. Não é possível alcançar a ressurreição sem a cruz. Por outro lado não se pode enfrentar a cruz sem amor, sem um autêntico encontro com Jesus Cristo. O encontro salvador precede necessariamente aquilo pelo que deverá passar. A cruz não é objetivo, não é colocada por Deus, mas, na estrada, ela se faz presente, como consequência de uma vida no amor, com amor e para o amor. O caminho espinhoso não deve ser empecilho para quem se volta para o Pai.
É necessário entender que somos humanos e que existe uma natureza imperfeita e, por isso mesmo, limitada, cheia de surpresas e complexidades, problemas e ensinamentos. Cada espinho pode ser uma possibilidade de reconhecimento de si, uma reflexão desértica, um passo para a maturidade fiducial. Podemos, além de espinhos, deparar-nos com um sol causticante, uma tempestade assombrosa, um calor de matar, um frio terrível. Não podemos desanimar, pois muitas vezes o sol pode ser nosso amigo num final de tarde e a chuva como motivadora de grandes e fecundas reflexões e alegria para o agricultor.
O mais importante é descobrir nossa própria vocação e lançarmo-nos, sem medo, na direção de Deus, tornando Sua vontade o alimento nosso de cada dia. A vitória é certa para aqueles que não se acovardam diante do Senhor, para aqueles que são capazes de dizer não aos apetites mundanos, para aqueles que são capazes, mesmo na dor, fazendo guerra a si mesmos, de uma entrega total, de se fazerem dons de salvação e de se tornarem autênticos instrumentos nas “mãos” de Deus para o bem de todos.
Importante, portanto, fixarmos nossos olhos no Crucificado. Ele não foi acolhido quando entrou em nossa história e foi rejeitado quando chegou Sua hora de partir para o Pai. Considerado um “maldito” do Senhor (cf. Dt 21,23), foi desprezado e pregado numa cruz na mais terrível manifestação de horrores contra o Inocente, Filho de Deus e Salvador Jesus Cristo. Tudo na Sua vida apresentou-se no amor, na verdade, na justiça e na misericórdia. Todo voltado para o Pai, viveu todo voltado para a salvação dos homens. Em nenhum momento desistiu de Sua missão redentora; enfrentou, de cabeça erguida, todas as tentações possíveis e, serenamente, não temeu os que Lhe impuseram mentiras, ódio e desprezo absoluto. Enquanto O odiavam, Ele amava a todos. Na cruz rasgou Seu coração em prece: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34).
Como não nos animar com tamanho exemplo? Jesus Cristo está nos dizendo que se nos fixarmos em Deus e desenvolvermos um “coração” de bondade e se nos adentrarmos no mistério da verdade e do interesse pela salvação do outro, apesar dos sofrimentos impostos por causa da vocação abraçada, passaremos pela cruz, “loucura para os gregos”, “escândalo para os judeus”, mas para nós que fomos feitos seus discípulos, é prova de participação no Seu amor e de confiança na misericórdia do Pai.
Um forte e carinhoso abraço
Pe. José Erinaldo