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Tratado da Graça

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Obs.: Esse material está disponível para todos que desejam se preparar para o exame final em teologia . Trata-se de um assunto sem autoria absoluta, de modo que a ninguém é dado o direito de posse, mas tão somente de uso-fruto e transmisão para o bem de quem necessita do conhecimento de Deus.

Deus Trino habita em nós para conduzir a nossa vida conosco, que somos ajudados pela Graça (criada), que é uma participação cristiforme à vida divina, dada para seguir Jesus (gratia elevans) e para superar as fraquezas da natureza decaída (gratia sanans). Na força da graça preventiva e cooperadora, o adulto deve preparar-se para receber esta participação sobretudo - mas não unicamente - com a fé, ou acolhê-la quando já a tenha recebido quando criança. Com esta participação (graça), Deus nos dá pelos merecimentos de Cristo, o perdão dos pecados e a renovação do homem interior na santificação e a filiação com a fé, a esperança e a caridade. A renovação interior é fundamento e obrigação para uma vida de boas obras na qual o cristão busca ‘ser perfeito como o Pai do Céu é perfeito’  e busca lutar contra a concupiscência, vivendo uma vida de boas obras que merece a vida eterna. Deus quer a salvação de todos, mas sobretudo dos fiéis. Por isso quer que todos cheguemos ao conhecimento da verdade revelada por seu Filho. Mas concede a graça a todos aqueles que vivem segundo a própria consciência, e acolhe na salvação também aqueles que não conhecendo-O, assim vivem.

 

 

A matéria é dividida em várias partes como já se nota na leitura da tese acima:

 

Deus Trino habita em nós... Este é o centro da doutrina sobre a Graça.

 

A Inabitação de Deus no homem é o início da possessão de uma graça criada. As duas são

unidas: graça criada e graça incriada.

 

Na força da graça preventiva... Trata-se da preparação ao momento indicado na frase

acima, isto é, ao momento da Justificação.

 

Com esta participação... Aqui queremos descrever o momento da Justificação: o

momento da possessão da graça santificante.

 

A renovação interior... A expressão descreve uma vida que iniciou-se na Justificação e

que consiste em fazer o bem, evitar o mal e merecer o céu.

 

Deus quer a salvação de todos... Se enuncia a vontade salvífica universal de Deus, que é

atuada sobretudo na missão universal aos cristãos confiada, oferecendo também a

esperança de uma possibilidade de salvação também para os não-cristãos, um tema

querido pelo Vaticano II.

 

  1. 1.    Deus Trino habita em nós para conduzir a nossa vida conosco, que somos ajudados pela Graça (criada), que é uma participação cristiforme à vida divina, dada para seguir Jesus (gratia elevans) e para superar as fraquezas da natureza caída (gratia sanans). 

 

A Inabitação segundo a Sagrada Escritura

 

Antigo Testamento

 

No AT, como caminho de preparação ao NT, distinguem-se quatro etapas ou modos nos quais se concretiza a presença de Deus em meio ao seu povo: a coluna de fogo ou a nuvem (Ex 13, 21ss; 14, 19-20...); a tenda (Ex 25, 8-9; 29, 42-46) e a arca (Num 10, 33-35; Ex 26, 34), onde a presença é relacionada com um lugar; o Templo de Salomão, lugar por excelência da presença de Deus; e o Novo Templo anunciado pelos profetas, no qual Deus tomará aposento (Is 2, 2; Jer 33, 18; Ez 36, 38).

 

Novo Testamento

 

O NT apresenta Jesus como Aquele no qual se cumprem as profecias: Ele é o Novo Templo (Mt 12, 6; Jo 2, 19). Paulo introduz a idéia da Inabitação quando apresenta a idéia de que Deus deu o seu Espírito que “habita em vós” (1 Cor 3, 16-17;  2 Cor 6, 16; Rom 8, 9.11) partindo de Ez 37. Segundo a interpretação paulina, o Novo Templo é o cristão (1Cor 3) e “habita em vós” tem o sentido de “habita entre vós”(na Igreja) e “em cada um de vós”. Porque os cristãos são templos de Deus, são santos; com uma santidade que é inicialmente doada por Deus mas que também é fruto da vida cristã. Daqui os contínuos avisos do Apóstolo: “sejais santos para corresponder Àquele que habita em vós” (1 Tes 4, 8). A inabitação do Espírito Santo é sempre unida à importância de uma vida segundo os preceitos de Cristo.  Em João é especialmente importante o cap. 14, clássico para a doutrina da inabitação de Deus no cristão, onde se conectam o amor a Cristo, a observância dos mandamentos e a inabitação da Trindade no cristão como resposta a esse amor. Em 1Jo 2, 22-27; 3, 24 e 4,11-16, aparecem as fórmulas da “imanência mútua”: nós permanecemos nele e ele em nós..., cujos pressupostos são a fé e a caridade. O Espírito é aquele que faz conhecer a Ele mesmo e às outras duas Pessoas.

 

História e Tradição da Igreja

 

Os Padres

 

Entre os Padres gregos, a inabitação do Espírito Santo no homem é usada como uma prova da divindade do Espírito diante da heresia dos pneumatômacos. Os Padres latinos ligam a inabitação com a pureza do coração e o cumprimento dos mandamentos.  Santo Agostinho inclui como sujeitos da inabitação também as crianças batizadas. Distingue, por um lado, a “praesentia divinitatis”, comum a todas as criaturas e a “praesentia inhabitationis”, exclusiva do batizado, identificando “templo de Deus” com “templo da Trindade” quando se refere ao batizado. Por outra parte, explica a inabitação a partir das “missões divinas”, que seriam o prolongamento das “processões” no tempo, o que deixa sem explicar a inabitação quando não existe a missão (O Pai não é enviado).

 

A Teologia

 

Contradizendo Pedro Lombardo, para o qual a caridade que move o homem é identificada com o Espírito Santo, Santo Tomás  separa, como Santo Agostinho, a “praesentia divinitatis” da “inhabitatio”, explicando esta última por meio da “missão”. A novidade que se dá no homem pela inabitação é explicada de duas formas: a “gratia gratum faciens” (graça criada ou santificante) e “Deus como objeto de conhecimento e amor”. A “gratia habitationis” se converte em “inhabitatio secundum gratiam”, com o que “gratia” e “inhabitatio” passam a ser duas realidades distintas, sendo a primeira o fundamento da segunda. A inabitação se dá quando existe a graça habitual e se verifica nos atos de conhecimento e amor a Deus. Cada ato de virtude leva consigo uma nova inabitação.  Suárez, por sua vez, explica a inabitação partindo da amizade bilateral.    

O Magistério

 

O Concílio de Trento menciona a “inabitação” em três momentos distintos: no Decreto da Justificação (cap. 7), quando fala da efusão do Espírito Santo em nossos corações; no Decreto da Penitência (cap. 4), quando fala do impulso do Espírito Santo que move e do Espírito inabitante; e, no mesmo decreto (cap.8) quando fala que quem peca ofende o dom do Espírito Santo. A “Divinum illud munus” de Leão XIII (1897) distingue entre “presentia ex creatione”(comum a todos os seres) e “presentia ex gratia”, pela qual Deus habita na alma do batizado-confirmado como em um templo. Esta é a “inhabitatio”, que tem como sujeito a Trindade, mas que, de modo especial, pode ser atribuída ao Espírito Santo.  A “Mystici Corporis” de Pio XII (1943) não menciona nem o Batismo e nem a Confirmação, mas diz que as três Pessoas estão presentes e são alcançadas mediante o conhecimento e a caridade, retomando a doutrina de Santo Tomás. O Concílio Vaticano II retorna às simples afirmações bíblicas sem explicar nada mais (LG 4, 9, 10; UR 2).

Explicação Teológica

 

A ordem natural não seria possível sem uma verdadeira amizade entre o homem e Deus, conhecido e amado somente através das criaturas. A familiaridade entre Deus e o homem justo supõe que se tenha estabelecido entre o homem e Deus uma comunhão que supera aquela que pode ser realizada por meio dos dons criados. Com respeito a isso se fala de graça incriada enquanto que Deus estabelece uma comunhão entre Si mesmo e o justo, não somente por meio de graças criadas, mas também dando-se a Si mesmo. Fala-se de inabitação da Trindade na alma do justo, já que esta doação faz possível o acesso a Deus não somente enquanto que é Um em sua natureza, mas enquanto que é Trino em pessoas.

    É oportuno recorrer ao conceito de amizade, explicando concretamente como na ordem atual se verifica a amizade entre o justo e Deus e porque esta amizade leva consigo uma presença das três Pessoas no justo. Deve-se começar por estabelecer que não pode haver uma verdadeira amizade entre o homem e Deus enquanto que o primeiro somente conheça o segundo através das criaturas.

    O encontro entre Deus e o homem, na ordem atual, acontece de maneira perfeita pelo fato de que a Revelação se deu através de Jesus Cristo, Verbo Encarnado, chegando até nós pela Igreja e, portanto, nos alcança de uma maneira proporcionada à nossa natureza sensível e comunitária. Para que o homem possa entrar em comunhão com Deus que se revela convidando-o à sua própria intimidade, se requer uma elevação ontológica: somente essa elevação é a que pode fazer o homem participante da natureza divina.

    Aplicando desta maneira a categoria “amizade” podemos explicar a Inabitação da seguinte forma: o Pai, o Filho e o Espírito Santo admitem o homem em sua própria intimidade, dando-se a ele como uma pessoa se entrega à outra pessoa. Nesta comunhão existe uma ordem. O Pai convida o homem à sua amizade por meio do Filho que se encarna; o Filho, por sua vez, envia o Espírito Santo que é o amor unitivo entre o Pai e o Filho; o Espírito, que se dá como “alma da Igreja” (cf. LG 7), une de modo misterioso os homens a Deus, fazendo-os participantes da comunidade salvífica e capazes de viver uma vida filial.

Nesta teoria aparece como o Pai, o Filho e o Espírito Santo se dão como pessoas e como o homem aceita esta doação; nesta vida pela fé, esperança e caridade e na outra pela visão beatífica. A doação trinitária supõe uma iniciativa divina e uma mutação ontológica, produzida no homem pela união com o Espírito Santo, alma da Igreja. Ao falar de inabitação, a Escritura completa e aperfeiçoa o tema da amizade. Em ambos os casos trata-se de uma doação pessoal. Mas no tema da inabitação se indica que cada uma das três pessoas possui esta amizade e especialmente Jesus, Verbo Encarnado, ao qual nos unimos para receber o Espírito Santo, que Ele possui em plenitude. Além disso, no tema da inabitação se sublinha como a amizade entre Deus e o homem em Cristo exige que o homem, ao receber a doação das três Divinas Pessoas, as receba com espírito de adoração e lhes ofereça, como em um templo, sacrifícios espirituais, aceitos a Deus por meio de Jesus Cristo (1 Pe 2, 5).

 

    A presença do Espírito Santo no homem tem a finalidade de  dirigir e sustentar a vida do mesmo e, ensinar-lhe a verdade. Assim, o Espírito entra na experiência e no conhecimento do cristão que vive na fé e na caridade, nas quais se manifesta o cumprimento dos mandamentos. Quem vive a vida de caridade recebe a paz que o Espírito Santo quer dar. Na presença operante do Espírito se reconhece a presença de Cristo que envia o Espírito e opera também no homem. Como o Pai vive no Filho e o Filho no Pai, quando um se mostra, revela também o outro.

    Na criança batizada e confirmada, a inabitação é explicada recorrendo à imagem do amor entre os pais e o filhinho; unilateral em um primeiro momento mas bilateral na medida em que a criança cresce. Assim, a criança recebe a graça santificante e a inabitação da Trindade, que deve aceitar e corresponder com o tempo.    

 

A Graça, participação cristiforme na natureza divina

 

Escritura

 

O texto clássico de 2 Pe 1,4 deve ser interpretado mais do que como somente referido à graça, como promessa de encontro com Deus na vida depois da morte. Nos Sinóticos, a doutrina da graça pode ser vista nas parábolas da semente, do fermento e dos talentos, onde Deus aparece dando algo que opera no homem. Nos acontecimentos da Páscoa e de Pentecostes aparece uma vida nova (também espiritual) que Cristo possui em si e doa para nós. Fala-se também de uma “dynamis”, uma força que opera em nós e que é distinta da pessoa do Espírito Santo. Paulo mostra a vida cristã como força divina que opera em nós (1 Cor 3, 9; 2 Cor 3, 5; Fil 2, 13) e como participação cristiforme à vida divna, como vida em Cristo (Col 2, 12; Gal 2, 20).  Para João a vida é uma de suas noções principais. No Prólogo, fala de uma vida cristiforme (“a vida estava Nele”) e da vida divina (1, 12-13). Especialmente importante é Jo 5,15-29, onde aparece a conexão entre o operar do Pai e do Filho em si mesmos e ao dar a vida ao homem. A vida divina encontra-se no Pai, vai Dele ao Filho e se encontra também nos crentes (vv.26-29). Quem crê, portanto, tem a vida eterna em si mesmo. O cap. 15 (a videira e os ramos) mostra que as boas obras que o Pai quer podem ser cumpridas somente por quem vive em Cristo, por quem leva em si a vida de Cristo.

    

História e Tradição da Igreja

 

    Na Igreja Antiga, São Justino parte do Salmo 82, 6 (“sois deuses e filhos do Altíssimo”) para falar da adoção divina e da divinização do cristão. Irineu fala da participação à vida divina. Os Padres Gregos desenvolvem a doutrina da divinização, partindo de 2 Pe, necessária para que o homem possa acolher a Deus em si. Santo Agostinho vê a graça como uma força dada pela benevolência divina que capacita o homem para viver uma vida cristã. Trata-se de uma graça de Cristo que nos é dada para que possamos viver em seu seguimento. Assim, enquanto os orientais falam da nova vida como participação na natureza divina (Jo 5), os ocidentais entendem a nova vida como participação na vida de Cristo (Jo 15).

A doutrina de Lutero

    

    A doutrina luterana poderia resumir-se nos seguintes pontos: 

    A justificação é uma mera não-imputação dos pecados, que ficam cobertos pela justiça de Cristo, permanecendo no justificado; 

    O homem se faz justo somente por uma nova relação com Deus, que já não condena mais o pecador e sim o aceita como justo em Jesus Cristo; 

    O pecado permanece mas cessa o título de condenação e o motivo de terror; 

    O emendar da própria vida (santificação) é mais conseqüência que condição da justificação e é promovida pelo dom do Espírito Santo, cujas primícias são concedidas ao homem em Cristo; 

    A total renovação do homem segundo a imagem de Deus se alcançará somente na etapa escatológica; por isso – segundo Lutero - se alguém põe sua confiança em algo ou alguém criado já não espera a salvação de Cristo. A justiça cristã não é uma nova forma, nem uma nova qualidade, mas é o mesmo Cristo que se faz nosso, através da nossa confiança Nele.

 

    A doutrina católica

    

    A existência de um dom criado no justo é ensinada no capítulo 7 do Decreto da Justificação do Concílio de Trento, onde se trata das diversas causas da justificação. Neste texto se vê com claridade que o homem se faz formalmente justo não em virtude de uma declaração divina somente, mas porque em constatação de uma real transformação. Esta mudança não é somente a inabitação do Espírito Santo. O cân. 11 faz uma distinção entre o Espírito Santo e o dom justificante, que é infuso pelo Espírito nos corações e que permanece com os homens. Este dom trás uma perfeição física, não somente um título ou um direito.

    Trata-se de um dom permanente, não somente de um impulso que Deus dá a cada um dos atos. Por isso, o Concílio, ao falar deste dom usa repetidamente a palavra inhaeret. Este verbo insinua que se trata de uma qualidade permanente recebida pelo homem, que o habilita a atos bons. Além disso, o Concílio defende que o homem em Cristo é realmente diferente do homem que se encontra no estado de pecado. Esta afirmação leva consigo a convicção de que o homem em Cristo, além do Espírito Santo que habita nele, recebe também de Deus um dom criado permanente que se distingue dos atos da nova vida em Cristo, como princípio dos mesmos. Esta é uma doutrina teologicamente certa. O concílio não condena a doutrina protestante se essa admite que os homens, ao serem inseridos em Cristo, experimentam uma mudança real em suas vidas, que não se limita a uma declaração puramente forense, ou seja, exterior, como mera imputação da justiça de Cristo. Também não exclui que a justiça do homem justificado dependa continuamente do influxo misericordioso do Redentor e afirma a necessidade de tal influxo.

 

       Reflexão teológica

 

    O homem cristão, conformado com a imagem do Filho, que é o primogênito entre muitos irmãos, recebe as primícias do Espírito, as quais o capacitam para cumprir a lei nova do amor (GS 22). Por isso, o homem que, por meio de Cristo, tem acesso ao Pai, tem que ser necessariamente distinto do homem “sem Deus” e “sem Cristo” (cf. Ef 2, 12). Não se pode conceber uma nova relação com Deus sem que o homem mude e esta mudança é fruto da ação divina e fundamento das novas relações pessoais que o homem estabelece com a Trindade em Jesus Cristo. A renovação desta semelhança divina deve ser considerada sob alguns aspectos:

    Pelo que diz respeito ao ser do homem, isso significa que o homem se faz participante da natureza divina, ou (segundo os Padres), divinizado; 

    Pelo que se refere ao ter do homem, significa que o homem possui as primícias do Espírito, isto é, a graça criada. Portanto, uma exposição adequada da doutrina revelada sobre a renovação da semelhança divina no homem requer que a situação do homem em Cristo apareça não como um conjunto de dons separados entre si (a graça incriada e as diversas graças criadas) mas como uma nova existência estruturada organicamente.

    O conceito de “graça criada” não pode ser entendido sem aquele de “graça incriada”. A presença do Espírito Santo e a graça criada são dois aspectos da mesma realidade que constitui a divinização do homem em Cristo. A graça criada e a graça incriada são comunicadas ao homem no mesmo instante e são absolutamente inseparáveis e a divinização é um efeito de ambas. 

 

  1. 2.    Na força da graça preventiva e cooperadora, o adulto deve preparar-se para receber esta participação sobretudo - mas não unicamente - com a fé, ou acolhê-la quando já a tenha recebido quando criança.

 

Este segundo enunciado da Tese centra sua atenção: na intervenção do sujeito adulto em seu caminho de conversão (antes da justificação), o qual sempre é iniciado pela graça; no rol que esse processo interage com a fé; na consistência e no significado do assentimento e da aceitação da justificação quando uma pessoa foi batizada quando criança (portanto sem seu consentimento).

 

Isso quer dizer que agora se tenta explicar como Deus ajuda misericordiosamente o movimento do homem à conversão; como o pecador deve cooperar livremente com esta atração divina e, por conseguinte, como uma ação divina se dá no homem que ainda não está em Cristo e em que consiste o impulso do Espírito Santo que “ainda não inabita, mas somente se move ajudando o penitente a preparar o caminho para a justificação” (Concílio de Trento, Decreto da Justificação, DS 1678).

Sagrada Escritura

 

Na Sagrada Escritura, sobretudo no NT, aparece uma exigência – “metanóia”- para aquele que queira entrar no reino de Deus. Esta metanóia é uma mudança na maneira de pensar, um afastamento do pecado e uma orientação a Deus, um comportamento que se expressa na vida. Em distintos textos do NT encontramos a explicitação desta metanóia (Mt  3, 2; 4, 7; Lc 15). 

O texto de Lc 15 inclui a parábola do filho pródigo, que mostra toda a profundidade da misericórdia do Pai, sendo completado pelas parábolas que estão antes (a dracma e a ovelha perdida). Uma leitura de nível dogmático do texto nos faz entender várias coisas: 

1) O homem deve fazer um caminho de desapego e separação do pecado, um caminho em direção a Deus e a Cristo, que pode ser cumprido ou não; 

2) Deus toma a iniciativa (o pastor busca a ovelha, a mulher a dracma, o Pai corre inesperadamente ao Filho); 

3) A festa (que se faz depois do encontro da ovelha e da dracma e depois do retorno do filho) pode significar a justificação.  

Já o texto de At 2, 38 retoma a necessidade da metanóia unida à necessidade da fé e do Batismo. Nos Atos 2, 41 fala-se da adesão à mensagem de Jesus, com a conseqüência da remissão dos pecados e do dom do Espírito Santo. Em At 11, 17-18 aparece como a fé é condição para o Batismo e a metanóia é um dom. O que é dado é a remissão dos pecados para quem crê e a justificação de tudo aquilo do qual não foi possível justificar-se mediante a lei de Moisés (At 13, 38; 11, 17).  

Paulo insiste na inutilidade da lei diante da justiça de Deus dada por pura graça. A graça é dada independente da lei (Rom 3, 21-31). Em Paulo começa a aparecer não só o fato da graça mas também sua necessidade. Fil 2, 13 diz que é Deus quem suscita em nós o querer e o operar, uma frase que vale para a vida do cristão, ou seja, do justificado.

Tradição e Magistério

 

A antiga Igreja

 

Na Antiga Igreja encontramos, de uma parte, a contínua oração pela conversão dos judeus e dos pagãos que considera a metanóia um dom de Deus e, por outra parte, antes de se receber alguém no seio da comunidade requer-se uma séria instrução e conduta de vida cristã e uma explícita confissão de fé (catecumenato antigo).

 

O Concílio de Trento

 

No Decreto da Justificação do Concílio de Trento, cap. 5, se afirma que a vocação a Cristo começa com uma gratia praeveniens e exclui todo “meritum”. O homem, sem a graça, não pode dar nenhum passo em direção à fé e à salvação, se bem deva existir um verdadeiro esforço.  No cap. 6, esta preparação é descrita: o homem deve abrir-se com uma fé inicial, depois, desde o arrependimento de seus pecados passados, se orienta à esperança e à confiança e então chega a um amor incipiente a Deus, tendo o bom propósito de receber o batismo e iniciar uma nova vida. O cap. 8 oferece duas expressões: per fidem se refere à fé como fundamento e início da salvação; gratis expressa a gratuidade da salvação e da justificação. Desta maneira, o Concílio de Trento relevou os pontos decisivos: 

  1.     o homem deve fazer algo antes da justificação; 

  2.     seu empenho inclui a fé e o propósito de batizar-se, atividades que podem ser

  3.     acompanhadas por outros atos; 

  4.     cada atividade que o homem realiza é iniciada e acompanhada pela graça de Deus.

 

Existem diversos atos pelos quais os pecadores, sob a influência da graça, devem preparar-se à justificação:

 

  1. a fé se descreve como um consentimento intelectual, que sem embargo é um ato

  2. livre com o qual o pecador se move em direção a Deus crendo que é verdadeiro

  3. tudo aquilo que foi revelado e prometido por Deus;

  4. O temor dispõe para a justificação e não é só medo das ações divinas, movido por

  5. uma tomada de posição afetiva, que leva ao aborrecimento do pecado, supondo

  6. uma fé unida à consideração da misericórdia de Deus;

  7. A dor dos pecados;

  8. Propósito de observar os mandamentos;

  9. Nos não batizados, o propósito de receber o Batismo.

  10.  

    O Concílio Vaticano I

 

    Na “Dei Filius” (DS 3010), o Concílio Vaticano I ensina a necessidade da graça e considera, de uma parte, a fé como dom de Deus e de outra, igualmente indispensável a colaboração do homem que deve acolher a graça que Deus oferece.

 

    O Concílio Vaticano II

 

    No Vaticano II abunda a doutrina da justificação mas o tema não é tratado de maneira específica.  A LG 40 afirma que os discípulos de Cristo não são justificados a título de suas obras mas em base ao propósito de Deus e de sua graça. DV 5 sublinha a necessidade da graça que faz iniciar o caminho a Cristo. Temos em forma moderna a doutrina de Trento: a graça inicia e acompanha o caminho em direção a Cristo; neste caminho é necessária a fé, mas isso requer uma conversão total do homem e uma mudança em sua conduta de vida.

    Na modernidade, com as contínuas interrogações e aprofundamentos sobre o batismo de crianças surgiu a necessidade de distinguir entre preparar-se para a justificação e acolher a justificação. A preparação é vista como uma das formas de acolhimento da graça. Assim, a justificação é articulada em três passos:

 

  1. A justificação oferecida: é a mensagem da cruz e da ressurreição de Jesus, que

  2. quer ser um benefício geral (mensagem pregada) e também um benefício

  3. particular, pelo fato que se orienta a um indivíduo.

  4. A justificação doada: trata-se do dom no qual o homem recebe a remissão dos

  5. pecados e a santificação; um dom que é unicamente de Deus.

  6. A justificação acolhida: é o dom enquanto é aceito pelo homem. O homem sabe

  7. do oferecimento, aprofunda seu conhecimento e se prepara para recebê-lo

  8. dignamente com sua vida. Esta acolhida pode dar-se depois de que o Dom tenha

  9. sido dado, talvez a uma criança, adolescente ou jovem, talvez em um adulto que o

  10. tenha perdido ou nunca a ele tenha-se aberto; neste caso, no momento da própria

  11. decisão positiva, a justificação apenas dada se torna justificação acolhida.

  12.  

É Deus quem dá a justificação, mas em um profundo respeito ao homem, para fazer-lhe ver que é seu interlocutor. Trento ensina que o pecador é capaz de responder à iniciativa divina e cooperar com ela livremente por meio da fé, “começo, fundamento e raiz da justificação” (DS 1352).

 

  1. 3.    Com esta participação (graça), Deus nos dá pelos merecimentos de Cristo, o perdão dos pecados e a renovação do homem interior na santificação e a filiação com a fé, a esperança e a caridade.

 

Tudo o que nos acontece no Batismo torna-se a base do nosso ser cristão: aquilo que somos e o que fazemos. Nesta linha, a terceira sentença da Tese aponta três elementos: 

  1.     remissão dos pecados e renovação do homem interior na santificação;

  2.  

  3.     filiação; 

  4.  

  5.     virtudes teologais.

 

A remissão dos pecados

Na descrição bíblica da ação com a qual Deus justifica o homem, encontramo-nos com duas afirmações principais: 

    A primazia absoluta da misericórdia divina que, com sua livre iniciativa, chega até o pecador indigno;

A eficácia desta ação pela qual o pecador fica realmente justificado.

    O Concílio de Trento expõe a doutrina católica sobre a ação da graça justificante defendendo-a da oposição dos reformadores que a acusam de semi-pelagianismo e afirmando que o pecador fica realmente transformado (justificado) pela onipotência divina. O ponto de discórdia entre reformadores e católicos estava em que os primeiros negavam que o homem deixasse de ser pecador, mesmo aceitando que na justificação o homem que recebeu o Espírito Santo fosse transformado. O Concílio, já no Decreto sobre o pecado original, define que, pela graça de Cristo dada no batismo, o homem fica perdoado de seus pecados de maneira que o batizado se vê livre de tudo aquilo que é verdadeiramente pecaminoso sem ter em si mesmo nada que possa ser odioso a Deus. A concupiscência não desaparece com o batismo e, por isso, o batizado não chegou à sua perfeição total com ele, mas somente foi transformado, de maneira que encontra-se em caminho com vistas à sua total renovação escatológica.

    Na sessão VI, o Concílio descreve a justificação como um processo pelo qual o homem é inserido em Cristo e unido perfeitamente a Ele, de modo a converter-se em um membro vivo do seu Corpo. A justificação é considerada a passagem daquele estado no qual o homem nasce filho de Adão ao estado de graça e de adoção de Filhos de Deus (DS1524) ou ainda a santificação e renovação do homem interior, pela voluntária recepção da graça e dos dons, de onde  que o homem se converte de injusto a justo e de inimigo em amigo, para ser herdeiro da esperança da vida eterna (DS 1528).

    O cap. 7 do Decreto da justificação afirma que a mesma é a santificação e a renovação do homem interior pela voluntária recepção da graça e dos dons, de modo que o homem se converte em justo não por imputação da justiça de Cristo, mas por sua própria justiça, ou seja, pela perfeição que Deus infunde nele de forma nova. 

    Cinco são as causas que influenciam na Justificação:

a) Causa final: a honra de Deus e a salvação do homem;

b) Causa eficiente: a misericórdia de Deus que sem nossos méritos nos perdoa; 

c) Causa meritória: Jesus Cristo que alcançou para nós a salvação;

d) Causa instrumental: o Batismo;

e) Causa formal: (que constitui a essência da justificação) a justiça de Deus;

Resumindo: a justificação se deve a um ato da misericórdia divina pela qual Deus acolhe o pecador arrependido, perdoando-o realmente de seus pecados e renovando-o interiormente.

A Filiação adotiva

Por mérito de Cristo, o homem justificado experimenta uma verdadeira mudança em sua vida, sendo feito participante da natureza divina (em Cristo somos filhos) e possuindo as primícias do Espírito, ou seja, as graças criadas que nos auxiliam na santificação. Assim, na Justificação o homem é realmente transformado e esta transformação não se reduz à inabitação, mas se trata de um dom permanente ao homem, vindo de Deus. Esta mudança divinizante é uma transformação ôntica que assimila o homem com Cristo pelo fato de que o homem se faz capaz de viver de uma maneira cristiforme, ou seja, filialmente.

Para explicar a filiação divina, devemos partir do conceito de adoção, que acontece quando um homem gratuitamente admite outro à participação da condição de filho natural; condição que leva consigo o direito à herança. O homem, considerado em sua natureza pode ser chamado metaforicamente “filho de Deus” pela criação. Contudo, é necessário um ato especial da misericórdia divina para que seja levado a participar dos bens que são próprios do Verbo Encarnado, Filho “Natural” do Pai. A adoção divina é diferente daquela humana já que esta supõe no sujeito certa idoneidade para receber a adoção e estabelece somente uma condição jurídica. No nosso caso, pelo contrário, é Deus quem se faz homem idôneo para participar dos bens do filho, mudando sua realidade. Portanto, o homem recebe ao mesmo tempo um novo ser e um novo papel diante do Eterno Pai. A elevação interior do homem é uma geração espiritual já que Deus comunica sua participação na própria natureza divina. Por isso, sob este ponto de vista, a adoção divina resulta mais semelhante à geração do que a adoção humana. Com efeito, confere a participação à vida divina.

Santo Tomás de Aquino pensa que o homem é adotado como filho por toda a Trindade já que toda Ela é causa eficiente da adoção do justo. Esta teoria é admitida por todos quando se pensa unicamente na adoção pela qual as Pessoas divinas regeneram o homem produzindo nele uma nova realidade. Contudo, pode-se dar um passo adiante considerando a parte própria das três Divinas Pessoas no mistério da nossa salvação. Não é preciso insistir muito de que é o Pai quem toma a iniciativa de enviar o Filho para que cheguemos a ser filhos seus; é somente o Filho quem se encarna e leva a termo nossa redenção; e são o Pai e o Filho os que enviam o Espírito Santo, que renova nossos corações e nos faz clamar: Abbá Pai! Tendo em conta esta economia trinitária, é preciso afirmar que entanto somos elevados à condição de filhos enquanto recebemos do Pai e do Filho uma participação do Espírito filial, do qual Cristo tem a plenitude, adquirindo com o Pai uma relação semelhante à de Cristo. Parece portanto que temos que concluir que o justo se faz filho somente da Primeira Pessoa da Santíssima Trindade já que se faz irmão do Filho recebendo o Espírito Santo que se une a ele de maneira misteriosa. Pela Encarnação, também os pecadores podem ser chamados irmãos de Cristo (por essa irmandade universal que une todos os homens); mas esta irmandade recebe um novo sentido nos justos, que compartilham com o Filho Encarnado o amor do Pai.

Virtudes teologais

Na sistematização tomista das virtudes encontramos primeiramente três tipos de virtudes: inatas, adquiridas e infusas. Estas últimas são causadas diretamente por Deus, a fim de que o homem possa agir de modo proporcionado à nova natureza recebida na justificação. As virtudes infusas se distinguem entre teologais e morais.  Esta dimensão se funda na teoria que afirma que os diversos hábitos diferem entre si pelo objeto ao qual se ordenam. As virtudes teologais tendem, com seus atos, direta e imediatamente a Deus enquanto que é seu fim sobrenatural.

As virtudes teologais são fé, esperança e caridade. Efetivamente, o homem está ordenado a seu fim por natural inclinação enquanto que possui no entendimento capacidade e inclinação para conhecer a verdade e, na vontade, a capacidade e a inclinação para conseguir e realizar o bem proporcionado à sua natureza. Ao ser regenerado à vida sobrenatural, é preciso que o homem seja renovado no entendimento e na vontade de uma maneira conveniente com o fim ao qual tende. Renovado também na fé, pela qual o homem está disposto a dar seu assentimento às verdades que Deus revela com relação à sua vida íntima. Renovado pela esperança o justo tende a Deus confiando poder chegar até Ele com sua ajuda: espera de Deus. Mas a renovação da vontade se completa somente com a caridade, pela qual o homem não está disposto a possuir a Deus mas, de certo modo, já se assemelha a Deus e tende a Ele com uma certa co-naturalidade: ama a Deus por causa de Deus mesmo.

 

4. A renovação interior é fundamento e obrigação para uma vida de boas obras na qual o cristão busca ‘ser perfeito como o Pai do Céu é perfeito’  e busca lutar contra a concupiscência, vivendo uma vida de boas obras que merece a vida eterna.

 

    A presente sentença nos leva a pensar sobre a possibilidade das boas obras, sobre o mérito e sobre a concupiscência. 

 

    As boas obras

 

No NT é constante a exortação dos cristãos a que cumpram “boas obras”. Na vida do justificado estas constituem um problema bem complexo (problema do mérito). Este tema foi muito debatido na história da Igreja, sobretudo na polêmica entre católicos e protestantes do século XVI. Enquanto os primeiros insistiam na necessidade das boas obras para conservar e desenvolver a nova vida que se recebeu de Deus e no valor das boas obras para receber a “coroa do justo”(2Tim 4,8), os protestantes, pelo contrário, colocavam o acento na imperfeição intrínseca de toda obra humana e na majestade divina, para a qual o homem somente pode sentir-se um “servo inútil” (Lc 17,10). O diálogo ecumênico dos últimos decênios deu bons frutos, reconhecendo que os católicos não fazem do homem o autor da sua própria salvação tornando inútil a cruz de Cristo e, por outra parte, mostrando que os reformados tão pouco fazem inútil a moral com a sua teoria da “sola fides”. Os reformadores sentiram agudamente o problema das obras boas no justo. Suposta sua doutrina sobre a total corrupção do homem caído e sobre a justiça meramente imputada, não podiam atribuir um valor verdadeiro às obras realizadas depois da justificação.

    Segundo a ortodoxia luterana, as boas obras não servem aos pecadores para a justificação e nem aos justificados para a vida eterna. Por outra parte, essas boas obras seguem infalivelmente a fé sincera, do mesmo modo que os bons frutos não podem faltar à boa árvore. Por conseguinte, o justificado deve fazer as boas obras, mas não como se estivesse obrigado a elas pela lei e sim espontaneamente e na liberdade do Espírito. Dada a corrupção que existe mesmo nos justificados, suas boas obras seguem sendo pecaminosas e portanto, é preciso que Deus, misericordiosamente, pelos méritos de Cristo não impute aos justos essas obras que em si mesmo seriam dignas de condenação.

    O Concílio Tridentino teve presente de maneira especial a tendência antinomista (heresia intra-luterana que não aceita a validade da lei) que era considerada como  conseqüência inevitável da doutrina da “sola fides”. Na sessão VI, cap. 11, o Concílio ensina que não somente não basta a fé para salvar-se mas sim que é falsa também a afirmação dos que dizem que o justo peca, ao menos venialmente, em todas as  obras. É lícito fazer o bem com vistas à vida eterna, contanto que não se exclua a tendência radical de toda boa obra é glória de Deus, fim último de todas as coisas criadas.

 

    O mérito

 

    A doutrina do mérito é exposta no cap. 16 do Concílio de Trento:

  1. Fala-se de um mérito propriamente dito, ensinando que o justo merece

  2. verdadeiramente e se cita 2 Tim 4, 7, onde se fala de Deus, justo juiz, que dá a

  3. coroa de justiça;

  4. As obras são meritórias se são conformes à Lei, segundo as condições do homem

  5. viator; por conseguinte não se pretende que as obras meritórias sejam

  6. perfeitíssimas; 

  7. Ensina-se que inclusive os justos, que obram bem, permanecem com a incerteza

  8. da própria salvação embora meritórios da vida eterna pelo sacrifício de Cristo.

  9. Também se ensina que a influência de Cristo precede, acompanha e segue as obras

  10. meritórias dos justos;

  11.  

O Concílio não determina se as boas obras do justo são meritórias pelo fato mesmo de que a graca as ordena à vida eterna (opinião tomista) ou se além disso, se requer a aceitação divina, expressada em forma de promessa (teoria escotista).

 

    A concupiscência

 

    Depois da renovação do homem na Justificação, nele permanece algo que não se adequa à sua nova realidade de ser e que portanto é uma desordem. A reflexão teológica tentou explicar a concupiscência dentro de dois esquemas de pensamento, um positivo e o outro negativo. O primeiro esquema (positivo) a considera como uma força estranha à verdadeira natureza do homem, introduzida de fora. É claro que esta linha de pensamento recebeu uma influência notável do helenismo e sua oposição entre corpo e alma. O espírito, como racionalidade seria eticamente perfeito; mas esse espírito, encarnado em um corpo, padece também tendências irracionais chamadas paixões. A concupiscência seria, portanto, um conjunto de inclinações espontâneas e irracionais, que tendem aos valores sensitivos, especialmente ao deleitável e que não estão submetidos à razão. O esquema negativo entende a concupiscência com a supressão ou enfraquecimento de uma força que deveria completar e manter em equilíbrio as inclinações igualmente boas. Dentro deste esquema mental, o mal não é a existência de uma tendência que deveria colocar-se no outro prato da balança para salvar desta maneira a ordem harmônica da estrutura dinâmica do homem. Antes, a concupiscência seria de ordem intrínseca.

    O Magistério da Igreja, antes do século XVI, não tinha se pronunciado sobre a natureza da concupiscência. Na V sessão do Concílio de Trento (em oposição aos protestantes, segundo os quais a concupiscência que permanece nos justificados também é pecado), reconhece:

  1. que a concupiscência permanece nos justificados;

  2. que ela inclina os homens ao pecado, de modo que os justos devem lutar contra

  3. ela;

  4. que a concupiscência provém do pecado;

  5. que ela não é um pecado próprio e verdadeiro naqueles que a ela não consentem.

  6.  

    Mais tarde, a Igreja, declarando-se contra Bayo, disse que Deus tinha podido criar o homem com a concupiscência (DS 1955), mostrando assim que a mesma não é má em si.

 

5. Deus quer a salvação de todos, mas sobretudo dos fiéis. Por isso quer que todos cheguemos ao conhecimento da verdade revelada por seu Filho. Mas concede a graça a todos aqueles que vivem segundo a própria consciência, e acolhe na salvação também aqueles que não conhecendo-O, assim vivem”.

 

 

    Os textos mais representativos da Sagrada Escritura que falam da vontade salvífica universal de Deus podem ser encontrados em Mc 14, 24 (o Corpo entregue e o Sangue derramado de Cristo por muitos para a remissão dos pecados); Mt 26, 28 (o Filho do homem veio dar a sua vida em resgate de muitos) e ainda em Mt 20, 27-28; Mc 10, 44-45; Rom 15, 5. Mas o texto central é 1 Tim 2, 4: “Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade”. Podemos somar 1Tim 4, 10: “Nós nos esforçamos e combatemos porque colocamos nossa esperança no Deus Vivo, que é o Salvador de todos homens, sobretudo daqueles que crêem”. A última expressão “daqueles que crêem” não diminui absolutamente a universalidade da vontade salvífica universal de Deus, mas indica na fé a abertura que deve acolher o dom da salvação.

    Entre os Santos Padres estão em primeiro lugar os textos da terminologia bíblica, sobretudo Rom 5,18; 11,32 e 1Tim 2,4, com suas expressões concernentes a Deus “nosso Salvador”. Os Padres gregos vêem a vontade salvífica universal em relação ao pecado do homem; os Padres latinos colocam a atenção sobre a vontade salvífica universal e a graça.

    Na Idade Média, colocam-se como centro de interesse seja a vontade salvífica universal seja a imutabilidade da vontade divina. Duas são as opiniões: de uma parte se afirma que ninguém é condenado sem própria culpa; a outra parte deixa-se condicionar pela opinião de Agostinho que introduz uma limitação na vontade salvífica divina. No Concílio de Trento, no Decreto da Justificação (cap.II), defende-se a vontade salvífica universal.

    O Concílio Vaticano II fala da vontade salvífica universal de Deus em diversas passagens e apresenta-nos elementos de grande novidade:

NA 4: A Igreja sempre teve e tem por bem afirmar que Cristo, por causa dos pecados de todos os homens, sofreu voluntariamente e por imenso amor se sujeitou à morte, para que todos conseguissem a salvação.

NA 1: ...Deus, cuja providência, testemunhos de bondade e planos de salvação abarcam a todos...

AD 7 baseia e motiva a atividade missionária na vontade de Deus;

LG 3: Declara com claridade que todos os homens são chamados à união com Cristo;

LG 9: fala da Igreja Corpo de Cristo como meio de salvação para todos os homens;

LG 15: fala da relação da Igreja com os não católicos: existe uma certa união verdadeira, no Espírito Santo, que também neles opera.

LG 16: Trata da relação dos não cristãos com a Igreja e diz que o desígnio de salvação abraça também aqueles que reconhecem o Criador... e nem dos outros que procuram o Deus desconhecido em sombras e imagens Deus está longe. De fato, aqueles que, portanto, sem culpa ignoram o Evangelho de Cristo e sua Igreja, mas buscam a Deus com o coração sincero e tentam, sob o influxo da graça, cumprir por obras sua vontade conhecida através do ditame da consciência, podem conseguir a salvação eterna.

 UR 3 afirma que para os irmãos separados da Igreja Católica está aberto o caminho da salvação.

GS 22 ...mas também para todos os homens de boa vontade em cujos corações a graça opera de modo invisível. Com efeito, tendo Cristo morrido por todos, e sendo uma só a vocação última do homem, isto é, divina, devemos admitir que o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de se associarem de modo conhecido por Deus a este mistério pascal.

    O Concílio insiste na necessidade da missão: LG 17, que está fundada na vontade de Deus que envia a sua Igreja. Como os católicos gozam de uma elevada condição, deles será exigido mais (LG 14). 

    O caminho pelo qual a Igreja chegou a esta doutrina ensinada pelo Vaticano II é uma consideração global sobre a maneira de atuar de Deus na economia salvífica, escolhida livremente por Ele. Este atuar manifesta-se sobretudo:

a) na Encarnação redentora;

b) na responsabilidade deixada a cada adulto em relação à sua própria sorte eterna;

c) na apresentação da misericórdia de Deus como modelo de imitação para a misericórdia humana.

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