“No AT o Pentecostes era a segunda das três festas em que todo o israelita tinha que comparecer diante de Javé (Ex 34,23); Dt 16,16); no Código da Aliança (Ex 23,16) é chamado: festa da colheita; em Ex 34,22 (cf. Nm 28,26): festa das primícias da colheita do trigo (celebrava-se os ázimos, e mais tarde, a Páscoa); em Dt 16,10 e Nm 28,26: festa das semanas (dava-se na colheita dos cereais), porque era celebrada sete semanas depois da festa dos ázimos (…). Mais tarde deu-se-lhe o nome de festa do quinquagésimo dia (grego πεντηκοστη: Tb 2,1; 2Mc 12,31s; At 2,1), porque era celebrado cinquenta dias depois da oferta do primeiro molho de espigas de cevada (Lv 23,9-14). O Pentecostes era essencialmente uma festa de colheita, por conseguinte uma festa alegre (cf. Is 9,2) e de ação de graças, em que se dava graças a Deus pela colheita de trigo que na Palestina começa mais ou menos sete semanas depois que ‘se meteu a foice na seara’ (Dt 16,9). No Pentecostes ofereciam-se as primícias ‘do que foi semeado nos campos’ (Ex 23,16; 34,22); Dt 16,10s prescreve ofertas voluntárias, que eram consumidas no templo, junto com o pobres e os levitas; Lv 23,17-20 menciona outros sacrifícios. Havia uma reunião festiva; Todo o trabalho era proibido (Lv 23,21; Nm 28,26). A essa festa originariamente agrária deu-se mais tarde, como a todas as demais festas, um sentido histórico (pelo menos desde o século II dC); Interpretaram-na como sendo a comemoração da promulgação da lei mosaica no Sinai»[1], «uma recordação-aniversário da promulgação da Lei no Sinai»[2]. «E na coleta das colheitas, a festa das Tendas ou Tabernáculos (cf. Ex 23,14-17; Dt 16,16)»[3].
I. O Pentecostes cristão
“O dom do Espírito com os sinais que o acompanham, o vento e o fogo, está em linha de continuidade com as teofanias do AT. Um duplo milagre realça o sentido do acontecimento: primeiro os Apóstolos se exprimem, para contar as maravilhas de Deus, em ‘línguas’ (At 2,4); o falar em línguas é uma forma carismática de oração que se encontra nas comunidades cristãs primitivas. Em seguida, embora ininteligível em si (cf. 1Cor 14,1-25), esse falar em língua é compreendido por todos os que estão assistindo; esse milagre de audição é um sinal da vocação universal da Igreja, pois esses ouvintes vêm das mais diversas regiões (At 2,5-11)”[4].
I.1 – Intencionalidade da narrativa[5]
a) Verificar a promessa do Espírito que Jesus fez e o cumprimento das profecias do AT, como Pedro recorda no primeiro kerigma que segue ao acontecimento de Pentecostes (Joel 3,1-2).
b) Constatar a força do Espírito atuando na missão evangelizadora e na vida da Igreja já desde o princípio da mesma. É a finalidade básica do ensaio histórico-teológico que é o livro dos Atos. O Espírito, como primeira testemunha, dá o aval ao anúncio e testemunho dos Apóstolos sobre Jesus de Nazaré, Filho de Deus, Senhor glorioso, e autor da salvação humana.
c) Proclamar na festa-aniversário da promulgação da lei mosaica a vigência da nova lei de Cristo e de seu Espírito, a nova Aliança e Páscoa seladas na pessoa e sangue de Cristo Jesus, ressuscitado, glorioso e atuando por seu Espírito.
d) E consequentemente, expressar a universalidade do novo Povo de Deus, quando ainda não havia saído dos limites do judaísmo. A ação e dinamismo do Espírito realizam a unidade na pluralidade de línguas, raças e culturas.
e) Carismas: 1. Critérios de autenticidade: o doutrinal – confissão pascal de fé: Jesus Cristo é o Senhor (contra a divinização do Imperador romano e dos éones, demiurgos e potencias superiores do sincretismo helenista de então). Aquele que faz esta confissão de fé cristã está animado pelo Espírito (1Cor 12,3b). E o segundo critério, aquele comunitário: em todo carisma que serve ao bem comum do grupo de fiéis manifesta-se a ação do Espírito (1Cor 12,7; cf. LG 12,2). 2. Princípios de ação: a pluralidade dos carismas e dos ministérios na comunidade cristã(...). Contra a tentação de monopolizar o Espírito, seja por parte da autoridade eclesial ou por parte de outros membros da comunidade, Paulo afirma sem discriminações: em cada um manifesta-se o Espírito para o bem comum (v. 7). O Espírito é a variedade e não monotonia informal: é riqueza e não pobreza. Portanto deve-se respeitar a cada um em seu carisma e personalidade cristã dentro da liberdade dos filhos de Deus (cf. AA 3)... à autoridade eclesial compete o juízo da autenticidade dos carismas, serviços e ministérios. Não para sufocar o Espírito, mas para testar tudo e conservar o que é bom (1Ts 5,12; 19,21; LG 12,2). A unidade dos carismas – A diversidade de carismas autênticos nos membros da comunidade não impede a unidade dentro da mesma. Porque os diversos dons e serviços coincidem em sua origem e finalidade. Sua origem é o Espírito de Deus, no qual todos fomos batizados para constituir um só Corpo (v. 13). E sua finalidade, edificar a comunidade.
“A diversidade não é para o confronto e a competição, mas para a unidade e a complementaridade. A história multissecular da Igreja, incluído nosso momento presente, atesta tudo isso e garante o que foi exposto anteriormente. Cada um vive sua condição cristã conforme uma vocação que é carisma, dom e serviço aos demais.
Há cristãos chamados ao sacerdócio ou à vida consagrada a Deus pelos conselhos evangélicos. Outros, a maioria, são chamados ao matrimônio e à vida familiar. Há cristãos, homens e mulheres, dedicados à vida apostólica, à pregação, à teologia, ao ensino, à educação das crianças e jovens, à catequese, ao atendimento social dos pobres, enfermos e anciãos abandonados. Há também cristãos comprometidos, como todos os anteriores, na promoção e libertação integral do homem. Há outros, finalmente, que tão somente podem dar testemunho pessoal de sua vida de cada dia, o que já é bastante.
Em todos eles manifesta-se o Espírito para o bem comum. Cremos no Espírito Santo, Senhor e doador da vida! Dizemos em nossa profissão de fé. Hoje é dia de auto-exame, de alegria e de oração ao Espírito de Deus para que repovoe a face da terra e renove em sua Igreja, em nós, os prodígios de um novo e perene Pentecostes”[6].
I.1 – “Sentido do acontecimento
a) Efusão escatológica do Espírito – Citando o profeta Joel (3,1-5), Pedro mostra que Pentecostes cumpriu as promessas de Deus: nos últimos tempos, o Espírito seria dado a todos (cf. Ez 36,27). O precursor anunciara já ter chegado aquele que deveria batizar no Espírito Santo (Mc 1,8). E Jesus, após sua ressurreição, tinha confirmado essas promessas: ‘Em poucos dias, sereis batizados no Espírito Santo’ (At 1,5).
b) Coroação da Páscoa de Cristo – Segundo a catequese primitiva, o Cristo, morto, ressuscitado e exaltado à direita do Pai completa sua obra derramando o Espírito sobre a comunidade apostólica (At 2,23-33). Pentecostes é a plenitude da Páscoa.
c) Congrega-se a comunidade messiânica – Os profetas anunciavam que os dispersos seriam reunidos na montanha de Sião e assim a assembleia de Israel estaria unida em torno de Javé; Pentecostes realiza em Jerusalém a unidade espiritual dos judeus e dos prosélitos de todas as nações; dóceis ao ensinamento dos Apóstolos, eles comungam no amor fraterno à mesa eucarística (At 2,42ss).
d) Comunidade aberta a todos os povos – O Espírito é dado visando um testemunho a ser levado até as extremidades da terra (At 1,8); o milagre de audição realça que a primeira comunidade messiânica se estende a todos os povos (At 2,5-11). O ‘Pentecostes dos pagãos’ (At 10,44ss) vem a demonstrá-lo cabalmente. A divisão que ocorreu em Babel (Gn 11,1-9) encontra aqui a sua antítese e seu fim.
e) Começo da missão – O Pentecostes que congrega a comunidade messiânica também é o ponto de partida de sua missão: o discurso de Pedro, ‘em pé com os Onze’ (At 2,14), é o primeiro ato da missão dada por Jesus: ‘Ireis receber uma força, o Espírito Santo (...). Sereis então minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, e até nos confins do mundo’ (At 1,8).
Os Santos Padres compararam este ‘batismo no Espírito Santo’, uma espécie de investidura apostólica da Igreja, ao batismo de Jesus, teofania solene no começo de seu ministério público. Eles mostram que em Pentecostes foi dada a nova Lei à Igreja (cf. Jr 31,33; Ez 36,27), e feita a nova criação (cf. Gn 1,2): esses temas não estão expressos em At 2, mas se fundamentam na realidade (a ação interior do Espírito e a recriação que ele concretiza).
I.2 – Pentecostes, mistério de salvação
Se o aspecto exterior da teofania foi passageiro, o dom feito á Igreja é definitive. Pentecostes inaugural o tempo da Igreja que, na sua peregrinação ao encontra do Senhor, constantemente dele recebe o Espírito que a congrega na fé e na caridade, a santifica e a envia em missão. Os Atos, ‘evangelho do Espírito Santo’, revelam a atualidade permanente desse dom, o charisma por excelência, tanto pelo papel que o Espírito tem na direção e na atividade missionária da Igreja (At 4,8; 13,2; 15,28; 16,6), como por suas manifestações mais visíveis (4,31; 10,44ss). O dom do Espírito caracteriza os ‘últimos tempos’, period que começa com a ‘Ascensão e terá sua consumação no último dia, quando o Senhor voltar”[7].
Jo 20,22a – “soprou sobre eles”
“… o gesto é um símbolo conhecido no AT e exprime bem a ideia de criação renovada. Aparece na criação de Adão (Gn 2,7): ‘Então o Senhor Deus modelou o homem e soprou nas suas narinas um sopro de vida e o homem tornou-se um ser vivente’ (cf. Sb 15,11). E na grande visão de Ez 37 (uma comunidade de mortos, Israel, torna-se finalmente uma comunidade de viventes), lemos: ‘Disse o Senhor Deus: Espírito, vem dos quarto ventos e sopra sobre estes mortos para que voltem à vida’ (37,9). Só este Espírito de Deus é capaz de recriar o homem e de arrancá-lo do pecado (cf. Ez 36,26-27; Sl 51,12-13). Como no Pentecostes lucano (At 2,1-11) também aqui o Espírito recria a comunidade dos apóstolos e a abre à missão. Mas, com maior precisão que Lc, Jo afirma que o Espírito é dom de Cristo: Recebei o Espírito Santo. O Espírito vem do ‘sopro’ – em hebraico, é a mesma palavra – do Cristo ressuscitado e o pensamento vai à cruz (19,30.34), da qual jorra exatamente a água do Espírito. É o dom da hora e da glorificação. O tempo indicado por ‘ainda não’ em 7,39 é agora cumprido, assim como a condição expressa nos discursos de despedida: a volta de Jesus ao Pai (16,7)”[8].
“A narração de Pentecostes em João apresenta-nos interpretação análoga (à de Lucas), embora em contexto teológico diferente. Nele há vinculação muito estreita entre a cena da crucifix, com a ‘entrega do Espírito’ por parte de Jesus moribundo (19,30) e a saída de sangue e água do lado transpassado do Senhor (19,34), e ainda a cena da aparição de Jesus ressuscitado, com os sinais glorificados da paixão, no meio dos apóstolos. Para Jo, a cena do tornar-se presente ressuscitado entre os seus é outra face, o fruto, da cena da crucifixão e da morte. O Ressuscitado chega, fazendo-se presente em meio à comunidade: pelos verbos usados (élthen e éste), o quarto evangelho parece querer sugerir que Jesus se torna presente, não percorrendo um espaços, porém, sim, mostrando-se no centro da comunidade ele é seu coração, a fonte perene de vida. O mostrar as mãos e o lado enfatiza que se perpetua nele o acontecimento pascal de morte e ressurreição, pelo que ele é para sempre: o Crucificado-Ressuscitado, de cujo lado, no Espírito, brotam o sangue e a água, vida e alimento da comunidade nova. O pousar do Espírito sobre os apóstolos por obra de Jesus realça que o Ressuscitado é a fonte do Espírito ‘sem medida’. A cena reflete, de um lado, a do Gn (Deus que sopra seu alento nas narinas do homem: Pentecostes é a criação consumada; de outro lado com a referência à paz dada por Cristo e o envoi para a remissão dos pecados, recorda a salvação plenamente realizada que deve ser comunicada a todas as nações”[9].
Atos 2,1-13
“a efusão do Espírito Santo na festa de Pentecostes cumpre a promessa de Jesus – Mas vós recebereis a força do Espírito que descerá sobre vós… (1,8) – e inaugural oficialmente o tempo da Igreja. Os doze apóstolos, cujo número simbólico há pouco foi reconstituído, junto com o primeiro núcleo de comunidades, estão habilitados com a força do Espírito para o anúncio autorizado da salvação, dom de Deus por meio de Jesus. Com a efusão do Espírito nasce a comunidade prometida pelos profetas para o tempo final. Todos estes temas são sugeridos pelo relato lucano, que retoma os fragmentos de antigas tradições da comunidade judeu-cristã e que os relê, segundo a particular perspectiva teológica que o baliza, ao escrever a história da expansão da primeiro Igreja. Numa primeira visão panorâmica, Aparece a articulação externa do relato: introdução (2,1), que refere as circunstâncias de tempo e o lugar do acontecimento ou experiência do Espírito; a cena teofânica ou manifestação divina do Espírito através de dois símbolos clássicos das teofanias, o vento (ou tempestade) e o fogo (2,2-3); segue a descrição do primeiro efeito do Espírito, a reação das testemunhas do mundo humano universal: o falar em ‘outras línguas’ suscita assombro, admiração (2,4-8); a universalidade e o ecumenismo, nos quais se inserem a ação e o testemunha do Espírito, são expressos pela lista dos povos (2,9-11). O núcleo da nova humanidade reunida pela força de coesão e de comunicação que tem a sua fonte no Espírito. O relato encerra-se com duas notas redacionais. A primeiro retoma o tema do assombro e a interrogação dos judeus: qual o sentido da experiência do Espírito? Sem a interpretação que une a manifestação do Espírito à história da salvação e ao acontecimento da morte e ressurreição de Jesus, ela fica ambígua (2,12-13). Assim, Lucas criou o pressuposto para a intervenção esclarecedora e a interpretação autêntica dada no primeiro discursos de Pedro.
II. Do Pentecostes hebraico ao cristão. Lc já nos fez entender que não se pode ser espectador neutro ou exterior da experiência do Espírito. Esta fica sendo um fenômeno absurdo e irracional, até que não se entre na lógica da ação gratuita e poderosa de Deus, que transforma o homem a partir de dentro e o faz capaz de estabelecer relações novas com os outros homens. Ora, para exprimir esta realidade da ação livre e inovadora de Deus, a tradição cristã tinha à disposição a linguagem e os símbolos religiosos das narrativas bíblicas, nas quais Deus intervém na história humana. A manifestação clássica de Deus é a do Êxodo, culminando no Sinai com a constituição do povo de Deus sobre a base das dez palavras ou decálogo. Em alguns ambientes sacerdotais judaicas, assumindo um significado novo: era a festa comemorativa da aliança no Sinai. Depois da destruição do temple em 70 d.C., também a corrente farisaica deu um novo conteúdo religioso à antiga celebração bíblica chamada de ‘festa das semanas’, hag shabu’ot ou das primícias da colheita (Ex 34,22), que se celebrava sete semanas após a páscoa. Sob a influência da teologia farisaica, que tendia a inculcar a observância da lei, comemorava-se no Pentecostes o dom da lei. As antigas versões litúrgicas, os targumim, e os comentários judaicas antigos relêem o acontecimento do Sinai nesta perspectiva: aos pés do Sinai é convocado o povo de Israel, o povo de Deus, junto com todos os povos para receber a lei. A acolhida da lei é a condição de vida para a comunidade renovada e santa.
É provável que, primeiro, a tradição cristã e, posteriormente, a reflexão teológica de Lucas tenham retomado alguns destes motivos, para apresentar o nascimento e a fundação da nova comunidade messiânica ou cristã. O fato de ter situado a ascensão do Senhor quarenta dias após a páscoa oferecia a Lucas a ocasião para dar uma localizaçao cronológica e litúrgica ao dom do Espírito no contexto da festa chamada pelos autores judeus de língua grega pentekostê ‘quinquagésimo’ (dia) (cf. Tb 2,1; 2Mc 12,32).
O texto grego da frase de introdução tem a solenidade do estilo bíblica e recorda o vocabulário caro a Lucas. Literalmente deveria ser traduzido assim: ‘No completer-se, symplêrousthai, o dia de pentecostes…’ onde há uma velada alusão ao cumprimento de uma história de promessas que alcança o seu vértice ou momento crítico (cf. Lc 9,51). A assembleia cristã que aguarda o Espírito é caracterizada pela unidade: todos estão reunidos no mesmo lugar. Tendo-se presente o modelo literário e espiritual ao qual se refere a cena de pentecostes, na expressão ‘todos’ devem estar incluídos os 120 discípulos reunidos ao redor dos doze com as mulheres e os irmãos de Jesus. A assembleia do povo de Deus que no Sinai esperava com um só coração o dom da lei, segundo a tradição judaicas, era constituída por ‘todos’, isto é, homens e mulheres (cf. Filo). Assim, agora, a nova assembleia de Deus que espera o dom do Espírito é unida e concorde, sem discriminações e exclusões.
A experiência do Espírito. Lucas descreve a experiência do Espírito utilizando os símbolos clássicos da ação poderosa e soberana de Deus: o vento e o fogo. O Espírito é um dom de Deus, vem do ‘céu’, não é um produto da sugestão humana. É uma força irresistível que foge ao controle e às manipulações humanas. Ao intellectual e teólogo judeu Nicodemos que quer saber ‘como’ age Deus, Jesus diz: ‘O vento sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai; assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito’ (Jo 3,8). A irrupção do Espírito que pervade cada pessoa com a sua ação única e singular é visibilizada por Lucas com a imagem das línguas de fogo que se dividiam e pousavam sobre cada um deles (2,3). A ação interior e transformadora do Espírito torna-se externamente uma nova capacidade de comunicação: começaram a falar outras línguas (2,4). Esta imagem das línguas de fogo para exprimir a ação de Deus foi sugerida, com toda a probabilidade, pela tradição judaicas a respeito do dom da lei ou palavra de Deus no Sinai. Segundo esta tradição, já testemunhada por Filo e pelas antigas versões litúrgicas, targumim, a voz de Deus dividiu-se em mais línguas (Tg Dt 33,2), em 70 línguas até, para que todas as nações pudessem compreender. O que Lucas quer realçar, retomando estes motivos da antiga tradição, é a universalidade que caracteriza o tempo do Espírito e a habilitação profética do novo povo. Muito mais que os antigos líderes, Moisés e Aarão, ou que os profetas chamados por Deus, os membros do novo povo messiânico podem proclamar com autoridade e força o que Deus fez pela salvação de todos os homens, isto é, as grandes obras de Deus (2,11). O que fundamenta a identidade do novo povo não é a lei divina, nem uma revelação codificável num ensinamento, mas a presence e a ação de Deus mediante o seu Espírito. Este é o tempo sonhado pelos profetas e aguardado pela esperança judaicas: o dom do Espírito fará com que a lei penetre nas consciências e mude o íntimo do homem (cf. Jr 31,31-34; Ez 36,25-28).
A nova humanidade. Depois de ter apresentado os protagonistas do novo povo, habilitados pelo Espírito para dar um testemunha autorizado e corajoso, Lucas apresentar os destinatários: os representantes do mundo judaico disperses entre todos os povos. Trata-se de judeus piedosos que, como os velhos Simeão e Ana, vieram viver na cidade de Jerusalém na expectative da libertação messiânica, para concluir na cidade santa os seus últimos dias. Cada nação do mundo, diz Lc, é convocado a Jerusalém para ser testemunha da nova época histórica que se abre com a efusão do Espírito. O leitor encontra uma confirmação da universalidade geográfica e étnica na lista de povos que Lucas acrescenta à afirmação geral. Elencos análogos são encontrados na tradição bíblica (cf. Gn 10) e também nos escritores helenistas. Quem acompanha, pela carta geográfica antiga, o elenco das nações ou dos povos, identifica uma linha directional que vai de leste a oeste e de norte a sul, partindo dos longínquos e antigos povos da Mesopotâmia através da Ásia menor, o Egito até Roma, centro do império e ponto de chegada da missão cristã segundo o plano de Atos. A menção à Judeia depois da Mesopotâmia interrompe esta linha ideal. As duas últimas populações, cretenses e árabes, também ficam for a do esquema. A ordem se recompose se nestes dois nomes se vir uma nota resumidora de caráter universalista que se poderia assim traduzir: povos da terra firme (árabes) e das costas/ilhas (cretenses), isto é, os povos de toda a parte do mundo habitado (cf. 2,5).
Aparece claramente o horizonte universal e ecumênico do novo povo mobilizado pela força unificante do Espírito. Poder-se-ia ver neste elenco de povos, reunidos para escutar a voz do Espírito na própria língua native, uma referência à dispersão dos povos e à confusão das línguas depois de Babel (Gn 11,1-9). A humanidade, dispersa e dividida depois da tentative de construer um imperialism religioso-político, é reunida pela força do Espírito que unifica os diferentes grupos humanos, respeitando e provovendo as características culturais, das quais a língua é expressão. Nem a força ou a repressão, nem a planificação econômica ou política podem assegurar a unidade dos povos ou dos grupos humanos, mas sim o poder interior do Espírito, que promove com a liberdade e o amor novas relações e cria espaços alternativos de comunicação.
Neste prisma pode-se intuir a interpretação que Lucas dá à experiência do Espírito que se exterioriza no falar outras línguas e no entendimento na própria língua native. Ele relê este fenômeno por meio de dois modelos interpretativos: o falar inspirado e comovido dos carismáticos, chamado glossolalia, do qual há exemplos nas comunidades cristãs de origem paulina (cf. 1Cor 12,10; 14) e nas experiências carismáticas de Atos (cf. 10,46-47; 11,15-17; 19,6) e o modelo da comunicação nas línguas dos diferentes povos. Esta última interpretação, sugerida pela antiga tradição judaica a respeito do dom da lei no Sinai, é institucionalizada por Lucas, porque lhe permite ressaltar a dimensão universal da ação do Espírito. Mas ‘falar em outras línguas’, seja como for interpretado, será um sinal de que, como todos os sinais religiosos, apela para a tomada de posição do homem: acolhida ou recusa. Em outras palavras, o acontecimento de Pentecostes não é um espetáculo que torne evidente a ação de Deus ou o Espírito. Esta ação de Deus que se manifesta nos homens por ela transformados faz surgir uma pergunta: o que significa isto? O autor por três vezes repete esta pergunta, suscitada pela confusão, assombro e admiração (2,7.8.12). A fé não é resposta a uma curiosidade cultural, não se nutre de emoções religiosos, mesmo que possa partir das interrogações humanas suscitadas pelo novo e inexplicável. A abertura e a busca sincera são um primeiro passo para a acolhida da Palavra e do Espírito. A conclusão apressada de quem não esta disposto a acolher o novo e o diferente passa pelos esquemas estereotipados e tem a resposta pronta: estão tomados pelo vinho doce!
Lucas nos apresentou dois comportamentos possíveis diante dos ‘sinais’ do Espírito. A palavra de Pedro no discursos que se segue desmascara os falsos alibis de quem tem medo no novo e amadurece a pergunta de quem esta aberto para a decisão da fé”[10].
João e Lucas
“Jo colocou a efusão do Espírito no dia da Páscoa para ensinar-nos que o Espírito é dom do Ressuscitado.
Lucas: no contexto da festa de Pentecostes, que era uma festa judaica muito antiga, celebrada cinquenta dias depois da Páscoa: comemorava a chegada do povo de Israel ao monte Sinai… Moisés tinha subido à montanha, tinha-se encontrados com Deus e recebido a Lei para ser transmitida ao seu povo. Os israelitas sentiam-se muito orgulhosos por esse dom: afirmavam que, antes que a eles, Deus tinha apresentado sua Lei a outros povos, que, porém, a tinham recusado, preferindo seus vícios e desregramentos a uma vida pessoal e social digna de homens. Para agradecer a Deus por essa predileção, os israelitas tinham estabelecido uma festa: o Pentecostes.
Ao afirmar que o Espírito tinha descido sobre os discípulos justamente no dia de Pentecostes, Lucas nos quis ensinar só uma coisa: que o Espírito tinha substituído a Lei antiga e se tornara a nova Lei para o cristão (…). Eis o que é a Lei do Espírito: é o coração novo, é a vida de Deus que, quando penetra no ser humano o transforma e, de sarça que era, se torna uma árvore frutífera, que produz naturalmente as obras de Deus. Quando o homem é permeado pelo Espírito, nele acontece algo de inaudito: ama com o mesmo amor de Deus. A partir daquele instante ‘já não precisa de ninguém para ensiná-lo’ (1Jo 2,27), já não precisa de lei alguma.
João chega até a dizer que o homem animado pelo Espírito é simplesmente incapaz de pecar: ‘Todo o que é nascido de Deus, não peca, porque o germe divino reside nele e não pode pecar porque nasceu de Deus’ (1Jo 3,9).
Nos Atos, Lucas não tem como objetivo fornecer-nos uma informação cronológica: quer somente fazer-nos compreender que o cristão tem como sua única lei o Espírito”[11].
III. Perspectiva dogmatica sobre a identidade trinitária do Espírito pentecostal
Duas dialéticas fundamentais que atravessam o dom e a manifestação escatológica do Espírito Santo:
1. A primeira dialética se refere à relação entre a revelação plena da identidade do Espírito Santo e o cumprimento da obra da salvação do homem como unidade, isto é, como Igreja. O dado teológico fundamental que se deduz do acontecimento pentecostal é, na verdade, que somente a partir do acontecimento pascal, isto é, da morte de Cristo como retorno seu ao Pai, tornam-se possíveis ao mesmo tempo a manifestação Espírito Santo como realidade distinta do Pai e do Filho encarnado (isto é, como pessoa, segundo a terminologia da definição dogmatica posterior) e, em consequência, a plenitude de sua obra de salvação e definição nos homens. Tal como o Pai se torna ‘visível’ no Filho feito carne, revelando-o como pessoa distinta dele, assim o Filho dá o Espírito, como pessoa distinta dele, só no momento em que volta ao Pai, deixando espaços – por assim dizer – para o Espírito. Desta maneira se manifesta o Ser trinitária de Deus: a distinção e a unidade do Três. Como consequência, justamente porque foi dado e revelado em plenitude, o Espírito pode comunicar aos homens o que é mais própria do Ser de Deus: sua própria vida divina (cf. 2Pd 1,4), tornando-os filhos no Filho uma só coisa nele, assim como ele é um com o Pai (cf. Jo 17,21-22). Nesta perspectiva, insere-se outrossim em realce a ‘função’ criativo-salvífico do Espírito, que – parafraseando W. Kasper – é ao mesmo tempo ‘o íntimo’ de Deus (a manifestação de sua ‘glória’ como unidade da vida divina) e seu ‘extremo’ (a livre e gratuita participação da mesma na criação por meio do homem, em Cristo).
2. A segunda dialética refere-se exatamente à manifestação da identidade pessoal do Espírito Santo. No momento em que se revela plenamente no Pentecostes, oculta-se também da maneira mais profunda: daquele que a teologia ortodoxa definirá como a ‘kénosis’ do Espírito Santo. E isto porque a identidade pessoal do Espírito Santo é – em nível ‘intratrinitário manifestar o Pai no Filho e o Filho no Pai; e – em nível histórico-salvífico – introduzir as criaturas humanas na mesma relação de amor e de unidade que transcorre entre o Pai e o Filho. Neste sentido, finalmente, é mister ler teologicamente a relação entre Maria e o Espírito Santo: Maria é o ícone da humanidade que foi feita filha de Deus no Filho, unificada e divinizada e, por conseguinte, é em seu rosto que brilha a glória do Espírito de Pentecostes”[12].
IV. O Espírito como um desconhecido – motivos[13]:
1. Falta de formação e catequese antes e depois dos sacramentos de iniciação cristã, especialmente batismo e crisma que nos tornam ‘templos do Espírito Santo’. Acrescenta-se a isso a ignorância bíblica da ação do Espírito de Deus no AT, na pessoa e vida de Jesus e na história da comunidade cristã apostólica e posterior.
2. Inexperiência vivencial de sua presence e ação em nossa própria vida pessoal, devido a um pobre nível de fé e vitalidade cristã. Uma expressão disto mesmo são as brincadeiras frequentes de mau gosto sobre a assistência do Espírito nas pessoa e organismos oficiais da Igreja: conclaves, concílios, papa, cardeais, congregações romanas e Bispos.
3. Abuso das supostas aplicações de sua eficácia mecânica e atuação quase mágica nos sacramentos, nas palavras, na autoridade ecclesial e no âmbito religioso e espiritual. Assim, alguns o identificam quase que exclusivamente com os carismas extraordinários, às vezes raros, dos santos; ou, o que é pior, com inspirações individuais, discutíveis, emoções extravagantes ou entusiasmos exaltados.
4. A própria dificuldade que em si mesma encerra a compreensão dos símbolos, imagens e expressões que, por carência de vocábulos e definições precisas, se aplicam nas Escrituras aos sinais da presence e ação do Espírito. Tais como: vento, fogo, línguas e dons, Espírito de adoção e de liberdade etc.
a. O Vento e o fogo. Sinal presente em todas as teofanias bíblicas; também em Pentecostes, conforme São Lc, nos Atos. O Espírito é vento impetuoso ou aragem que percorre a terra com a força do Alto.
b. Água viva que apaga a sede; assim o chamou Jesus (Jo 7,38). A água significa tanto o Espírito como o batismo (3,5;1Jo 5,8).
c. Defensor, advogado e consolador. No discursos de despedida Jesus prometeu repetidas vezes a seus discípulos a assistência do Espírito para depois de sua partida (Jo 14,16-26).
d. A vocação e inspiração dos profetas (Is 61,1; Ez 11,5) e a unção dos reis (1Sm 16,13) no AT são efeito do Espírito de Deus que cria e sustenta todos os seres viventes e repovoa a face da terra (Sl 103).
e. Seus sete dons, baseado no texto de Is (11,2), onde lemos que sobre o Messias irá pousar o Espírito do Senhor, são: Sabedoria e inteligência, conselho e fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus. São os mesmos dons que o Bispo pede para os crismandos com a imposição das mãos (Ritual da Crisma): e que imploramos do Espírito na bela Sequência de Pentecostes.
f. Os frutos do Espírito, em contraposição às obras da carne, são: amor, alegria, paz, compreensão, delicadeza, bondade, lealdade, amabilidade e domínio de si mesmo (Gl 5,22-23).
V. É a hora do Espírito
1. Na Igreja
a. Protagonismo decisivo do Espírito Santo na renovação da Igreja e sua missão evangelizadora do mundo.
b. Renovação carismáticas católica.
c. Comunidade de vida e de aliança.
d. Movimentos e eventos internacionais de cunho renovado.
e. Função do Espírito: rejuvenescimento da Igreja (LG 4).
f. É perceptível o sopro do Espírito nos constants Movimentos que de um ou outro modo vivificam a Igreja, tais como: comunidades cristãs de base, cursilhos, equipes de casais, focolare, grupos de oração e ecumenismo; somem-se a isso os institutos de vida consagra, tanto seculars como religiosos, as Ordens religiosas, as Congregações e as sociedades de vida apostólicas.
g. A educação presente na Igreja doméstica pelos pais.
h. As pastorais e Movimentos paroquiais.
2. E fora da Igreja
a. O Espírito atua também no mundo a salvação de Cristo destinada a todo ser humano: lutar pela paz, pela vida, pela justice, pela libertação integral, pelo bem cultural, pela ecologia, pelo desenvolvimento pleno de todos, pela fraternidade etc.
b. (Atua na vida dos que não chegaram ao conhecimento de Jesus Cristo, estimulando-os na prática das virtudes humanas e na vivência da verdade).
[1] Dicionário enciclopédico da bíblia, red. A van den Born, Petrópolis 1992, 1180-1181.
[2] B. Caballero, Nas Fontes da Palavra (Ano A), Aparecida-São Paulo 1992, 151.
[3] B. Caballero, Nas Fontes da Palavra (Ano A), 151.
[4] X. Léon-Dufour, Vocabulário de Teologia Bíblica, São Paulo 2005, 758-760.
[5] B. Caballero, Nas Fontes da Palavra (Ano A), 152-153.
[6] B. Caballero, Nas Fontes da Palavra (Ano A), 153.
[7] X. Léon-Dufour, Vocabulário de Teologia Bíblica, São Paulo 2005, 758-760.
[8] R. Fabris – B. Maggioni, Os Evangelhos (II), São Paulo 1992, 486.
[9] X. Pikaza – N. Silanes, Dicionário Teológico o Deus Cristão, São Paulo 1998, 689-690.
[10] R. Fabris, Os Atos dos Apóstolos, São Paulo 1991, 59-64.
[11] F. Armellini, Celebrando a Palavra (Ano C), São Paulo 1998, 198-201.
[12] X. Pikaza – N. Silanes, Dicionário Teológico o Deus Cristão, 692-693.
[13] B. Caballero, Nas Fontes da Palavra (Ano B), 142-145.
INSTITUTO DE VIDA CONSAGRADA E RELIGIOSA SANTO ATANÁSIO
Rua Venezuela, 153 – Espinheiro, Recife-PE