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Antropologia Teológica

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Obs.: Esse material está disponível para todos que desejam se preparar para o exame final em teologia . Trata-se de um assunto sem autoria absoluta, de modo que a ninguém é dado o direito de posse, mas tão somente de uso-fruto e transmisão para o bem de quem necessita do conhecimento de Deus.

 

 

 

“Se o homem olha dentro do seu coração se descobre também inclinado ao mal e imerso em tantas misérias que não podem certamente derivar do Criador, que é bom... O homem encontra-se dividido em si mesmo. Por isso, toda a vida humana, seja individual que coletiva, apresenta as características de uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas” (GS 13). Se, desde o início da história, o homem tentou atingir o seu fim prescindindo de Deus, também teve que aprender a conviver com aquilo que experimenta como mal, isto é, não o bem em si (Agostinho). À luz da salvação que nos vem oferecida em Cristo, a Escritura e o ensinamento da Igreja nos fazem ver o sentido profundo desta experiência: encontrando-se sob a escravidão do pecado, reconhece a necessidade da redenção e da recapitulação em Cristo.

 

Os dois textos clássicos nos quais se fundamenta biblicamente o pecado original, termo que certamente não aparece na Escritura, são Gen 2-3 e Rom 5,12-21, ainda que no decorrer da história somaram-se a estes outros de menor importância ( Salmo 50, 7, Jó 14, 4; Sab 2, 23, Ef 2, 3 etc). Contudo, não podemos dizer que em cada texto, por si só, encontraremos a prova evidente da doutrina do pecado original; é raro que se possa descobrir em um só texto o fundamento de um dogma. Somente considerando tais textos em sua globalidade e dentro de um contexto bem maior poderemos apresentar um argumento sólido.

 

Antigo Testamento

 

No AT a existência do pecado aparece constantemente: um pecado que afeta essencialmente a relação do homem com Deus, acarretando também uma ruptura com a comunidade. Em Israel, as relações entre o indivíduo e o grupo se integram e complementam entre si de tal modo que existe uma solidariedade no bem e no mal. Nesta relação recíproca, a culpabilidade individual comporta uma responsabilidade coletiva.

Na narração da queda que vem apresentada em Gn 2-3, expressa no gênero literário sapiencial, o pecado é apresentado como ruptura da relação entre o homem e Deus, quando o homem pretendeu, livremente, ocupar o lugar de Deus e, além disso, desafiá-lo. Deste modo manifesta-se o que, em síntese, é todo pecado no homem. Este é o início de uma história marcada pelo pecado. A reflexão sobre o gênero literário de Gen 2-3 feita pelos teólogos católicos, a coloca como uma narração etiológica[1], que não exclui sua índole simbólica. Flick e Alszeghy dirão que neste mixtum compositum o autor, ao querer explicar a fonte das misérias que afligem os homens de hoje, “ensina uma doutrina religiosa, concebida na linguagem de suas formas míticas, mas que supõe fatos realmente acontecidos”[2].

O AT, tomando como base Gen 2-3, nos proporciona alguns dados importantes da doutrina do pecado original: a existência de uma pecaminosidade universal que chega até o presente e sua origem histórica no começo da humanidade[3]. Por outro lado, apesar da idéia de solidariedade – agora em seu aspecto negativo - de todos os homens no AT, não se encontra no mesmo uma conexão evidente entre a pecaminosidade universal e o primeiro pecado.

Portanto, no AT se afirma constantemente:

      a) a existência humana marcada pelo sofrimento e pela morte. Estes aspectos da condição humana são decorrentes de uma relação com Deus defeituosa, porque esta é a relação fundamental da qual dependem todas as demais (o homem consigo próprio, com os outros, com o mundo).

      b) a existência humana marcada pelo pecado. Existe ruptura de relações com Deus e com o próximo. Nisso consiste o pecado. E isso não é inevitável e nem normal. Não deveria ser, já que somos imagens de Deus e uma só carne com todos os homens.

      c) existe uma solidariedade de todos no pecado dos demais. Solidariedade que pode ser vista claramente inclusive naqueles autores que valorizam e insistem na responsabilidade pessoal (Jr 31, 29; Ez 18, 2). Somos solidários tanto na história iniquitatis como na história salutis.

 

Novo Testamento

 

Diante do AT que afirmava a pecaminosidade universal, o NT, constatando o fato, declara que todos fomos redimidos do pecado por meio de Jesus Cristo. A realidade, a profundidade e a extensão do pecado universal somente podia ser captada inequivocamente à luz da salvação universal. É a cruz de Cristo e não a queda de Adão aquilo que nos dá a medida e as dimensões da nossa culpa. É o mistério da salvação que esclarece o mistério do pecado e não o contrário[4].

A contribuição decisiva do NT à doutrina do pecado original não é encontrada nos evangelhos. Neles encontramos a visão do AT mas colocada em relação com Cristo e com o Reino. É necessária uma metanóia, passar do coração de pedra ao coração de carne para entrar no Reino. É necessário um novo nascimento (Jo 3,1-7) realizado pela aceitação da fé (e seguimento) de Cristo, que define a realidade como um campo, onde crescem juntos trigo e cizânia e onde se escolhe caminhar na luz ou nas trevas. 

A doutrina é melhor esclarecida ao interno do corpus paulinum e mais concretamente em Rom 5,12-21. Este texto tradicionalmente era lido na perspectiva de Santo Agostinho:  “in quo” é uma expressão referida a Adão (todos estão incluídos no pecado de Adão). Contudo, hoje se sustenta que esta expressão quer significar “dado que, porquanto...”

Fundamentalmente o apóstolo quer ensinar-nos a superioridade da obra redentora de Deus em Jesus Cristo sobre o pecado e a morte. E para demonstrar a eficácia universal da obra redentora de Jesus Cristo, Paulo coloca em relevo o paralelo entre Adão e Cristo, entre o Reino de Deus e aquele do pecado. Contrapõem-se duas formas distintas de solidariedade: a solidariedade de Adão com todos os homens (reino do pecado e da morte) e aquela de Cristo com todos os homens (reino da graça e da vida). Por isso, Paulo dirá que “como pela desobediência de um só homem todos foram constituídos pecadores, assim também pela obediência de um só todos serão constituídos justos” (Rom 5, 19 e 1Cor 15, 21-22.45-49). A balança entre a história de perdição e aquela de salvação se inclina sempre do lado de Jesus. A solidariedade de todos em Adão, origem do pecado e da morte no mundo, é superada somente pela solidariedade de todos em Cristo, que nos dá a Graça em abundância. Ele nos livra dos pecados pessoais (hemarton) e da força do pecado (hamartia) na qual somos introduzidos e para a qual nos inclinamos inevitavelmente.

Paulo distingue entre pecado (hamartia) e transgressão (parábasis – Rom 12,14), desobediência (v.19), delito (v. 15.17.19). O que entra na história, o pecado-hamartia não é uma transgressão, mas a força do mal expressa e continuada pelos pecados de todos. Por isso, reina a morte, entendida não somente no sentido biológico, mas total, isto é, separação de Deus, alienação, etc. Paulo resume nestas passagens a idéia de que a história e a situação de pecado não possuem Deus como autor, mas o próprio homem. Contudo, não interessa tanto falar deste pecado e sim da universalidade da salvação em Cristo, que se estabelece na aceitação de Cristo pela fé, recebendo dele a filiação e a koinonia e passando da solidariedade com o corpo de pecado para aquela com o Corpo de Cristo.

 

Conclusões

      

Não encontramos uma apresentação completa e esquematizada do pecado original na Escritura, mas uma série de elementos que a Igreja desenvolverá posteriormente. Recolhemos como essenciais da Revelação bíblica os seguintes ensinamentos:

a) A pecaminosidade universal que faz do mundo um reino de pecado e que se manifesta pessoal e socialmente;

b) O convencimento de que a origem do mal foi uma opção humana culpável situada no começo da história;

c) A função mediadora de um ato humano (Adão) no estado universal de perdição e o reestabelecimento da mediação em Jesus Cristo;

d) A livre decisão pessoal é aquela que confirma nossa solidariedade no destino prévio de graça ou de perdição.

Apesar disso, na Escritura não encontramos imediatamente a afirmação da presença nas crianças de um pecado próprio e verdadeiro; não se especifica quem é Adão (um sujeito concreto ou um coletivo?) e não se explica o modo com o qual o pecado é transmitido a cada pessoa.

            

2.    A Tradição da Igreja

 

Os quatro primeiros séculos: os Padres.

 

Apesar das contribuições muitas vezes em evolução e ainda incompletas dos Padres da Igreja nos primeiros séculos, podem ser observadas algumas tendências comuns referentes ao pecado original que procuramos apresentar de maneira resumidíssima:

O pecado original é visto como um estado herdado de Adão, pelo qual a humanidade recebe como herança uma corrupção que se manifesta particularmente na morte. Para os Padres, todos os homens estão afetados negativamente pela decisão de Adão e, por conseguinte, costuma-se afirmar que o fato de que o homem peque é possível por causa do pecado de Adão.

Aflora também, cada vez mais freqüente, a frase “todos pecamos em Adão” (tradução incorreta de eph’ho de Rom 5,12) sublinhando a implicação no pecado de Adão e a solidariedade de todos os homens com ele, ainda que desde a tipologia Adão-Cristo se acentua sobretudo a unidade e a solidariedade de todos os homens em Cristo. A realidade do pecado entra na perspectiva unitária da história da salvação e assim o rito de batizar as crianças começa a ser fundamentado na necessidade de que todo o ser humano tem de ser tocado pela ação salvífica de Cristo[5].

 

Santo Agostinho

 

No século V, Santo Agostinho sistematizará a doutrina do pecado original em sua controvérsia contra os pelagianos e usará pela primeira vez o termo peccatum originale. Sua influência será determinante no desenvolvimento posterior da doutrina.

Santo Agostinho descobre progressivamente que Cristo é o Redentor de todos e por isso, quer salvar – diante do papel secundário e exemplar[6] que desempenha Cristo no pelagianismo - a necessidade universal de Cristo redentor. Partindo dessa necessidade absoluta que todos os homens possuem de Cristo para conseguir a salvação, começa a afirmação da universalidade absoluta do pecado. Todos nascem com um pecado distinto dos pecados pessoais e somente a graça de Cristo liberta os homens desta situação.

Assim, Santo Agostinho admite nas crianças um pecado já que pensar contrariamente poderia significar que estes não necessitam da redenção de Cristo e que então Cristo não seria o redentor de toda a humanidade. O batismo cancelaria o pecado original e as crianças que morrem sem ele sofrem uma espécie de condenação. Para Agostinho, a situação do homem ao nascer assemelha-se à do homem que comete um pecado pessoal, enquanto implica a morte da alma (ou seja, a privação da graça) e a perversidade da vontade (concupiscência dominante) como conseqüência do pecado pessoal de Adão.

 

Teologia Escolástica

 

A teologia escolástica move-se sob a ótica agostiniana, em continuidade com o ensinamento magisterial. Fundamentalmente aparecem três questões na reflexão escolástica: a natureza do pecado original (em que consiste); sua transmissão (seu modo de difundir-se) e o tipo de pecaminosidade (em que sentido é pecado).

As explicações a estas questões abertas virão das distintas tendências predominantes: a corrente agostiniana(Pedro Lombardo e Escola de Lião) via na concupiscência habitual a essência do pecado original e, em certo modo, este se transmitia por geração; a corrente anselmiana via o pecado original como a perda da justiça original e a geração não seria a causa mas a condição de transmissão do pecado. Em Santo Tomás se chega a uma síntese das anteriores correntes, quando distingue que a essência do pecado original, no qual encontra-se todo descendente de Adão, consiste materialmente na concupiscência enquanto que, formalmente na ausência da justiça original. Com respeito à transmissão do pecado original, segue a corrente anselmiana, mas dentro de uma concepção da humanidade como solidariedade corporativa[7].

Com o nominalismo (séculos XIV e XV), reaparece o agostinianismo que insiste na concupiscência como elemento formal do pecado original e se esquece a tese tomista. As intervenções do Magistério são pouco significativas neste período.

 

Concílio de Trento

 

Na sessão V do Concílio de Trento, no ano 1546, foram retomados os ensinamentos magisteriais que tinham sido formulados no Concílio de Cartago (418) o qual, utilizando pela primeira vez o termo pecado originaltinha condenado o pelagianismo. São retomados também os ensinamentos do Concílio de Orange (529) que concluiu a controvérsia semi-pelagiana. Estes ensinamentos todos foram completados pelas respostas teológicas que buscavam dar às exigências formuladas pela questão do pecado original na Igreja dessa época.

A intenção dos padres conciliares nos cânones desta breve sessão[8] consistia em, mais do que apresentar uma visão completa do problema, opor-se a alguns erros com respeito ao pecado original (pelagianismo, protestantismo) que se distanciavam da fé da Igreja Católica. Por esta razão, deixou várias questões abertas, que permaneciam discutidas entre os teólogos católicos[9], tais como “em que consistia o estado de justiça original” ou “em que modo o pecado é pecado original” ou “por que todos somos solidários no pecado”.

Considerando aquilo que o Concílio propõe como dado de fé e traduz em palavras e fórmulas, podemos destacar na definição do dogma elaborado os seguintes ensinamentos normativos:

a) A existência do pecado original, morte da alma (cân. 2);

b) que afeta interiormente a todos (cân. 2, 3, 4)

c) do qual somente a graça de Cristo, dada pelo Batismo, pode libertar-nos (cân. 3 e 4).

d) O Batismo cancela totalmente quanto existe de pecado no batizando, mas a concupiscência permanece depois do batismo, porque não é pecado em sentido próprio na pessoa dos batizados (cân. 5);

e) A situação universal de pecado possui como fator desencadeante a ação histórica engendrada pela liberdade humana (cân. 1);

            Por último, convém distinguir no decreto os níveis diferentes aos quais pertencem as afirmações. Poderia estabelecer-se uma ordem normativa onde o nível mais profundo seria de índole cristológica: o homem necessita da graça de Cristo, o único que dá a todos a salvação. Um segundo nível, unido ao anterior, seria o eclesiológico-sacramental, já que a salvação de Cristo acontece na Igreja, que administra o Batismo para o perdão dos pecados. Em terceiro plano estão as afirmações antropológicas, pois se vê como a humanidade não incorporada a Cristo está oprimida pelo pecado que lhe impossibilita a salvação. O quarto nível é o etiológico, que caracteriza a pecaminosidade humana em relação ao relato de sua origem (pecado original originante)[10].

            

Do Concílio de Trento ao Concílio Vaticano II

            

Até o século XX a intervenção mais importante do Magistério com relação ao pecado original pode ser considerada a condenação de M. Bayo pelo papa Pio V com a bula Ex omnibus afflictionibus (1/10/1567)[11] e, pouco antes do Concílio Vaticano II, a Encíclica Humani generis de Pio XII (12/08/1950)[12] onde se alude ao pecado original no contexto das teorias da evolução.

            Se o Concílio Vaticano I não chegou a tratar o tema, no Vaticano II encontramos poucas referências à questão do pecado original. Fala-se dele para iluminar a situação do homem no mundo. Sem entrar em matéria discutível, considera-se a doutrina tradicional, ainda que com uma linguagem existencial e em perspectiva salvífica (GS 10,13,18,22; LG 2; SC 6).

            O Vaticano II refere-se ao tema sobretudo em LG 13 quando fala que o homem, no início da história, abusou de sua liberdade e ergue-se contra Deus buscando conseguir sua finalidade última fora Dele e causando em si mesmo uma divisão profunda, de modo que toda a história e a humanidade encontram-se envolvidas em uma luta entre o bem e o mal[13].

            Durante os anos posteriores ao Vaticano II o tema ganhou atualidade. Paulo VI reafirmou o dogma tradicional tanto no Simpósio organizado sobre o tema (1966) como nos números 16-18 do Credo do Povo de Deus (1968) e no ponto 2 da declaração que uma comissão de Cardeais realizou – sob sua direção - sobre o Novo Catecismo Holandês. Os teológos, por outro lado, procuraram repropor de maneira nova a doutrina tradicional do pecado original[14]. Por último o Magistério de João Paulo II, sem entrar em problemas controversos, reafirmou a formulação dogmática.

É importante integrar a teologia do pecado original no conjunto de toda Revelação cristã[15]. O tema tem uma coerência dentro da vontade salvífica universal de Deus e a universalidade da redenção de Cristo. Nos últimos anos a teologia fez um grande esforço para reformular esta doutrina.

Um problema para a compreensão do pecado original ou “solidariedade negativa dos homens no mal e no pecado” foi considerado quase exclusivamente em conexão com o batismo das crianças. Este ponto de partida ajudou a reformular a condição pecadora da humanidade, mas “é melhor tomar como ponto de partida a solidariedade dos homens no bem e, consequentemente, no mal e as repercussões comunitárias do pecado. Somente a partir da situação do homem que peca pessoalmente, ou seja, de quem pessoalmente ratifica o pecado de Adão, pode-se abordar o problema do pecado original nas crianças, ou seja, em qual medida devem ser consideradas também as crianças como pecadores”[16]. É importante ver sobretudo que relação possui o dogma do pecado original com o mistério de Cristo e com o chamado à unidade dos homens Nele, segundo o desígnio primeiro de Deus.

 

 A unidade de todos os homens em Cristo

            

Deve-se deixar de lado a sistematização tradicional que supõe a teologia do pecado original como anterior à cristologia e à soteriologia. Segundo este modo de pensar, o fundamento último da solidariedade de todos os homens está em Adão, primeiro pai do qual todos nós descendemos. Cristo seria relevante para todos somente porque todos foram afetados pelo pecado original. Nesta lógica, a solidariedade de Adão é anterior àquela de Cristo.

            A teologia atual insiste mais na doutrina da criação em Cristo, mais fiel ao NT. A solidariedade com Cristo-cabeça é anterior a todo vínculo inter-humano. A partir de Jesus é que Adão recebe seu sentido... tudo foi criado em Cristo e para Cristo. A graça concedida ao primeiro homem é, desde o primeiro instante, graça de Cristo. O pecado original tem que ver com a solidariedade dos homens em Cristo.

            Se os homens não podem realizar sem Cristo a sua vocação divina – porque Nele se funda o desígnio inicial do Pai sobre a humanidade - não podem também sem Ele superar a condição de pecado na qual a humanidade colocou-se. Na figura de Jesus não se separam estes dois aspectos de cabeça e redentor que encontram-se inseparavelmente unidos... Nossa solidariedade em Cristo-cabeça é, portanto, solidariedade em Cristo redentor. A pecaminosidade universal somente pode ser compreendida como o revés da medalha da vocação de todos os homens à união com Cristo e com seu Corpo, que é a Igreja. Esta vocação pede, para sua plena realização, a cooperação de cada homem, segundo o desígnio irrepetível de Deus.

 

 A mediação única de Cristo e a cooperação dos homens à salvação

            

A vocação de todos os homens à união com Jesus significa a solidariedade entre os homens, o que implica a cooperação de todos. O bem e o mal que cada homem pode realizar tem inevitavelmente repercussões sociais. A mediação de graça e de pecado é conhecida no AT. O NT nos apresenta Jesus-homem como o único mediador entre Deus e os homens (cf. 1Tm 2,5)[17].

            Os homens, ao serem imagem de Jesus, devem cooperar de diversas maneiras para o bem dos demais. De algum modo, cada homem é chamado a mediar para os demais a graça que vem de Jesus Cristo. Os aspectos positivos e negativos desta vinculação dos homens entre si estão unidos de modo perene.  Pecado significa que esta cooperação à obra de Deus não é aceita e que, como conseqüência, não existe esta situação de presença de Deus e de graça que impulsiona o homem ao bem.

 

 O “pecado original originado”

            

Ponto de partida: a experiência de divisão interna e externa do homem.

            O texto de GS 13 nos fala da experiência humana e da divisão interna e externa que encontra-se em cada ser humano. Cada homem sofre as conseqüências desta ruptura, mas esta afeta também, segundo o Concílio, toda a vida humana, individual e coletiva. Esta situação na qual se encontra a humanidade é a que nos descreve a Escritura e toda a Tradição da Igreja. Partindo desta experiência humana, na luz da fé em Cristo, a Tradição da Igreja tratou de explicar qual é o sentido teológico desta situação.

            

O “pecado original” como privação da comunicação da graça.

            A mediação da graça de Cristo que o homem poderia receber ao vir ao mundo falhou. E esta mediação positiva, não existindo, converte-se em mediação negativa, em um verdadeiro obstáculo para o desenvolvimento pleno do ser humano em sua relação com Deus, sendo fonte de novos pecados pessoais. A partir do pecado de Adão, dessa primeira deficiência de comunicação da graça, faz estrada a história de pecado. O pecado pessoal é a inserção, livremente ratificada, nesta corrente de pecado que Adão iniciou.

            Esta corrente de pecado dá lugar às “estruturas de pecado”, que originalmente não podem ser separadas das culpas pessoais de cada homem mas que, depois, em seu crescimento e desenvolvimento,  produzem situações de difícil superação e controle, também por parte de quem as iniciou, e se convertem por sua vez em fonte de novos pecados.

            Pode-se entender o pecado original originado a partir desta privação da graça querida por Deus como conseqüência da ruptura da comunicação de amor e de bem que de fato produziu-se na história. Esta comunicação que deveria realizar-se no desígnio originário de Deus não tem lugar agora e a privação da presença de Deus e da graça que quis dar-nos é “pecado”[18] ainda que não em sentido de culpa pessoal (conceito unívoco de pecado) mas de modo análogo (que não significa impropriedade).

            O homem que chega a este mundo encontra-se privado da comunicação e da mediação da graça, o que o faz pecador, em solidariedade (negativa) com todos os demais homens; incapacitando-o para o bem e induzindo-o à ratificação pessoal  - através dos pecados pessoais - desta situação herdada ou recebida.

            A partir desta concepção, relativiza-se o problema da transmissão do pecado original por geração física. Esta é somente o meio (veículo) e não a causa. O Magistério quer evitar que esta transmissão seja considerada mera imitação, ou seja, que o pecado anterior a cada um seja algo exterior a ele. A transmissão por geração significa que este é um elemento a mais da condição humana que cada um recebe pelo fato de seu nascimento e que os efeitos deste pecado estão presentes desde o primeiro instante.

            Deve-se entender a geração humana em um sentido integral que leva em consideração muitos fatores e não somente físicos (entrada em um meio humano e cultural, em uma sociedade). Todos estes âmbitos estão afetados pela privação da mediação de graça. Desde este ponto de vista não se requer nem mesmo o monogenismo para a explicação do pecado original.

            O pecado da humanidade que nos precedeu pesa sobre o ser humano que vem ao mundo e pesa sobre toda a humanidade. Pesa enquanto impede a união com Deus, mediada por Cristo e a união entre os homens, enquanto supõe uma “diminuição” da presença de Deus e de seu Espírito. A negação da verdadeira solidariedade humana, que se notas na participação ao pecado de Adão, encontra sua expressão máxima nos pecados pessoais.

            

O pecado original nas crianças.

            O caso das crianças não deve constituir o eixo do estudo sobre o pecado original. É no pecado pessoal do adulto que se manifesta em maior grau a falta de mediação positiva da graça, a solidariedade negativa em Adão.

            Se o pecado afeta os homens antes de toda decisão, também afeta as crianças, que necessitam de Cristo e da sua graça. Sem graça, a criança está privada da capacidade de amar a Deus e ao próximo, está inclinada à ratificação pessoal da história de pecado da humanidade que lhe precedeu. O Batismo é administrado para todos e também para as crianças “para a remissão dos pecados” em sentido verdadeiro ainda que analógico. Elas contraíram algo do pecado de Adão que deve ser lavado no Batismo. Esse algo pode ser entendido como a privação da graça, que leva consigo a privação da amizade com Deus.

 

A origem do pecado e sua universalidade: o “pecado original originante”

 

 O pecado original explicado em chave de evolução.

            Alguns teólogos quiseram encontrar o fundamento do pecado não somente na liberdade humana, mas no mesmo cosmos e no mundo pré-humano. Neste sentido, o pecado original seria uma realidade de ordem trans-histórica, mais que um elemento da série de acontecimentos históricos. Cristo, pelo contrário, seria aquele que sobrepassa em si e em todos os homens as resistências à unificação e à ascensão espiritual que encontramos na matéria. Esta é a posição de Teilhard de Chardin, K. Schimidt, Moormann e J.L. Segundo.

            Contudo, não parece que estas tendências foram seguidas na teologia recente. A tendência da teologia católica foi a de distinguir entre o pecado e a limitação humana, a opção negativa diante de Deus e as carências criaturais que devem ser superadas. O pecado “originado” chama em causa um pecado “originante”; não somente uma origem mas especificamente um pecado de origem.

 

 O “pecado do mundo”

            Na concepção tradicional do pecado original, acentuava-se quase exclusivamente o pecado de Adão para explicar o estado de pecado no qual a criança vem ao mundo. Na teologia moderna, mais bíblica, colocou-se a questão sobre se a herança de pecado e privação de graça que o homem recebe está determinada somente por um pecado inicial ou se foi produzida também pelo acúmulo de pecados cometidos por todos os homens. A resposta teológica católica inclina-se, em geral, pela aceitação desta segunda possibilidade.

            Nessa questão de colocar a doutrina do pecado original no âmbito mais vasto do ”pecado do mundo” foi notável a influência de P. Schoonenberg. Para ele, o pecado originante é “o pecado do mundo”, entendendo-se o conjunto das ações pecaminosas cometidas ao largo da história. Não é preciso reconhecer uma influência especial do primeiro pecado; este não teve mais importância que qualquer outro, é um dente a mais na engrenagem que constitui o maquinário do “reino do pecado”.

 

 “Pecado de Adão” e “pecado do mundo”

            A Escritura e alguns elementos da antiga Tradição da Igreja contribuíram na recuperação do “pecado do mundo” neste contexto do pecado original, como causador, ao menos em parte, da situação do afastamento de Deus, na qual a humanidade se encontra. Mas isto não significa para a maioria dos teólogos “abandonar o valor especial do primeiro pecado”, do “pecado de Adão” em sentido estreito.  Muitos, aceitando que todos os pecados são causadores da atual situação da humanidade, crêem que se deva conceder ao primeiro pecado uma relevância peculiar, ainda que possa haver (e existam de fato) discrepâncias notáveis no modo de conceber isso. 

            Não existe contradição entre o “pecado de Adão” e o “pecado do mundo”; não se trata de uma alternativa. Ambos exigem-se mutuamente: o segundo sem o primeiro deixa de ter explicação. E o primeiro manifesta o real peso do segundo. Sem dar ao primeiro pecado uma relevância especial, não se vê como se pode salvar a universalidade da condição pecadora da humanidade. O domínio do pecado e o afastamento de Deus entraram no mundo desde o começo, ainda que não só este momento seja responsável de todo o mal que agora vivemos.

 

 As conseqüências do pecado original depois do Batismo

 

            No Batismo, o homem é plenamente renovado e desaparece dele todo pecado, ainda que permaneçam umas conseqüências ou efeitos desse pecado original no homem regenerado. Não nos separamos inteiramente do mundo de pecado. A mediação negativa do mal segue atuando em nós enquanto estejamos no mundo.

            Na teologia do “estado original” e na narração bíblica do paraíso, se fala da condição do homem no estado de amizade com Deus. Os bens “preternaturais” seriam aqueles dons que o homem teria possuído no caso de não ter pecado e que não lhe foram devolvidos com a graça de Cristo. No Magistério se fala sobretudo de dois: a integridade ou ausência de concupiscência e a imortalidade.

            “Na medida na qual o justo segue sendo pecador, a morte continua oferecendo um aspecto inquietante e suscitando uma angústia irreprimível e a solicitação ao mal persiste como real ameaça de desintegração e como experiência de alienação interior. Em outras palavras: enquanto (e porque) a graça co-existe com o pecado, a imortalidade e a integridade se veriam permanentemente pressionadas pela morte e pela concupiscência; não seriam dons pacificamente possuídos de uma vez por todas, mas uma conquista trabalhosa e somente conseguida no eschaton”[19].

 

 

Conclusões

 

1-    “Pecado original” é um conceito analógico (não é como o pecado pessoal), que corresponde à distinção paulina entre pecado e transgressão.

  1. Indica a situação real (pecado original originado) na qual todo homem cresce e se desenvolve = uma sociedade marcada pelo pecado: o primeiro deles (pecado original originante) e todos os demais.

  2. Esta história de pecado afeta todo aquele que nasce, de um modo prévio à sua opção pessoal e de um modo interno, porque lhe estrutura psicológica e moralmente. Não se trata de uma simples imitação consciente.

  3. Esta influência se fundamenta na natureza social do homem. O ser humano é biologia inculturada ou cultura que entra em contato com a biologia. É liberdade situada na história. Devemos superar os conceitos fisicistas e imobilistas da natureza humana.

  4. Para que este germe de pecado ou tendência ao pecado ou imunodeficiência moral adquirida se desenvolva é necessária a opção pessoal. O pecado pessoal é, portanto, fruto continuador e propagador do pecado original.

  5. A teologia do pecado original é derivada e referida à da graça original ou projeto salvífico original de Deus. Não existe sucessão entre situação de pecado e situação de graça, mas uma dialética entre misterium salutis e misterium iniquitatis. Mas onde abundou o pecado superabundou a graça (Rom 5,20). Esta é mais forte.

  6. A doutrina do pecado original é o reverso necessário da salvação universal de Cristo: todos necessitam de Cristo para salvar-se.

  7. Com a doutrina do pecado original se superam:

  1. O gnosticismo, pois o “pecado ambiente” não é algo natural, um destino implacável, mas é fruto de uma decisão histórica.

  2. O pelagianismo, já que o homem não pode salvar-se sem Cristo. Ou seja, não basta para sua realização uma simples perfeição moral; necessita-se da divinização pela comunhão: ser filhos no Filho.

 

 

O Homem, Imagem de Deus

 

 

 “Somente no mistério do Verbo encarnado encontra verdadeira luz o mistério do homem” (Gs 22). Procurando e aprofundando o sentido da própria existência, o crente se descobre “chamado” a situar-se no próprio mundo e compreender este âmbito vital à luz da própria fé.  Se a mesma criação convida o homem a apropriar-se da relação com o outro e com Deus, seu criador, a idéia bíblica do ser feito à imagem e semelhança de Deus encontra só em Cristo a sua completa e perfeita expressão (Irineu). O sentido da verdade sobre o homem se revela ao homem no seu relacionar-se a Deus Pai por, com e em Cristo (cf. Col 1, 15-20), distinguindo entre alma e corpo, sabe que é pessoa – única e irrepetível – chamada a viver em estreita relação de solidariedade com os outros e a tutelar o inteiro criado.

 

A tese em geral

A tese se inicia com uma frase do magistério, da “Gaudium et spes” e toda a elaboração dessa tese depende da compreensão desta frase. Prossegue-se depois com a precisação deste princípio hermenêutico, que é o seguinte:

«Procurando o sentido da própria existência, o crente deve situar-se no próprio mundo e compreender este último à luz da própria fé». Vejamos como já se trata de uma precisação do princípio: «somente no mistério do Verbo encarnado encontra verdadeira luz o mistério do homem» (Gs 22).

A segunda parte da tese, remete-nos um pouco atrás, a aquilo que Deus fez por nós nas origens, isto é, o fato que Deus nos criou à sua imagem. 

«Se a mesma criação convida o homem a relacionar-se com o outro e com Deus, seu criador, a idéia bíblica do ser feito à imagem e semelhança de Deus encontra somente em Cristo a sua completa e perfeita expressão».

Na terceira parte vejamos como entra no princípio hermenêutico a figura de Cristo, já a partir da análise do primeiro capítulo do Gênesis. E este ponto não pode ser relegado a um campo secundário: «da criação à imagem e semelhança de Deus, encontrar a imagem de Cristo». 

A última parte, apresenta o fato que somos «imago Christi» e nos remete a construir uma relação com a divindade por meio de Cristo para que se desvele o sentido das verdades sobre nós. Quais são essas verdades sobre o homem?

1. O ser pessoa, única e irrepetível. 

2. O ser pessoa na distinção alma-corpo.

3. O viver em estreita relação de solidariedade. 

4. O tutelar a inteira criação.

Comentário sobre GS 22 de J. Ratzinger

 “Somente no mistério do Verbo encarnado encontra verdadeira luz o mistério do homem” (Gs 22). Procurando e aprofundando o sentido da própria existência, o crente se descobre “chamado” a situar-se no próprio mundo e compreender este âmbito vital à luz da própria fé. 

Contextualização

O geral se inicia com a: «Gaudium et spes». Devemos considerar que a citação do número 22 não vem colocada no documento isoladamente, mas em atenção e conclusão a um caminho percorrido por todo o primeiro capítulo da Constituição dogmática. 

É um capítulo que começa no número 12 e termina com o número 22; e assim se esquematiza:

a) Inicia falando do homem, já como imagem de Deus e

b) Conclui-se falando do homem à luz de Cristo, que é o Novo Adão. Porém, se aqui nos encontramos no ponto de chegada, há um subtendido ponto de partida. E é interessante como no falar sobre o homem, imagem de Deus, nos reportamos ao projeto que Deus tem para nós, o projeto inicial de Deus para cada um de nós, a protológica. 

Para falarmos de Cristo, Novo Adão, devemos recorrer a São Paulo. E percebemos que, partindo de Paulo, aquele de quem se fala não é o Cristo que viveu no primeiro século de nossa era. Quando ele fala de Cristo, Novo Adão, refere-se ao Cristo que estava por vir, portanto o Cristo que é objeto da Gaudium et spes 22. Trata-se do Cristo plenitude, que ao fim dos tempos levará a si o cumprimento de todas as coisas (e de onde podemos perceber o gancho com a escatologia): «Adão, o qual era figura daquele que devia vir» (Rm 5, 14)[20]. Assim, a perspectiva da Gaudium et spes entende a humanidade como imagem de Deus, mas interpreta a humanidade que parte da imagem de Deus e chega à imagem do Cristo, Novo Adão. Todo o primeiro capítulo da Gaudium et spes representa uma tensão entre estes dois momentos. Todas as verdades encontram em Cristo a fonte e o cumprimento[21].

 

1. Quando o jovem Ratzinger faz o comentário a este parágrafo, afirma que neste enunciado da GS há uma intersecção de duas coisas: uma resolutio in hominem junto a uma resolutio in theologiam. Isto é, em nosso empenho teológico devemos caminhar em duas direções. A primeira consiste em compreender a fundo que coisa é o homem (resolutio in hominem) e, em seguida, que coisa é Deus e que coisa é Deus por nós. É muito interessante a forma como Ratzinger integra esses aspectos, afirmando que na GS não se pode pensar um separado do outro. Colocamo-nos diante de uma situação em que devemos ter em conta a tensão de elementos que conjuntamente nos ajudarão a colher o profundo significado dos parágrafos 12 ao 22 da Gaudium et spes.

Devemos considerar por primeiro o mistério da Encarnação, isto é, o Verbo que se faz história, que desce para fazer parte da humanidade, que carrega em si a resolutio in hominem, o Verbo de Deus que se torna homem. Ao mesmo tempo e ao mesmo modo é o mesmo Verbo que, fazendo-se história, encaminha toda essa história à direita do Pai, carregando consigo toda a humanidade. Assim, a Encarnação não é só a resolutio in hominem do Verbo, mas também a resolutio in theologiam da própria história, uma vez que se não colocássemos as duas coisas juntas, estaríamos esvaziando o significado da Encarnação. Portanto, como disseram os Padres: quando o Verbo se faz história, está levando a cumprimento a máxima expressão daquilo que fomos feitos: imagem de Deus. Recordemos que diversos Padres já admitiam que a Encarnação era necessário, mesmo sem o pecado do homem, porque sem essa plenitude não estaríamos em grau daquela expressão que Deus desejou para nós. 

 

2- Uma segunda tensão a encontramos ao interno da mesma Cristologia. Recordemos o debate que freqüentemente ressurge na Cristologia: o problema de uma Cristologia do alto e uma Cristologia do baixo. Que coisa está por trás dessa discussão?

Entendemos por Cristologia do alto a abordagem onde se procede de Deus para tentar compreender a descida do Verbo, enquanto a Cristologia do baixo adota o princípio da experiência humana do Cristo terreno como ponto de partida para daí se chegar à mesma divindade do Verbo. No fim das contas, devemos ter presente que estes dois esquemas não podem estar em contraposição. Se desejamos ir ao fundo do mistério da Encarnação, o Cristo que senta à destra do Pai é o mesmo que se faz homem. Não existe, pois, uma Cristologia do alto sem a de baixo e vice-versa. Na realidade aqui se esconde um problema muito mais filosófico que teológico:

a) quando nós falamos de Cristologia do alto, focalizamos freqüentemente o Cristo em sua natureza, em sua Essência;

b) quando nós falamos em Soteriologia ou em Cristologia do baixo, normalmente insistimos sobre aquilo que Cristo faz, ou seja, englobamos Essência e Existência.

A questão é que este problema é insolúvel. Não se pode condividir esta afirmação. Não se pode construir um sistema independente do outro porque o Cristo feito carne é aquele que pré-existiu desde toda a eternidade.

 

3- Partindo da Gaudium et spes, à luz de Colossenses 1, dizemos que fomos feitos à imagem de Deus em vista do Cristo. Só assim poderemos compreender melhor nossa existência: «somente no mistério do Verbo encarnato encontra verdadeira luz o mistério do homem» (GS 22).

imago Dei e imago Christi

Se a mesma criação convida o homem a relacionar-se com o outro e com Deus, seu criador, a idéia bíblica do ser “imagem e semelhança de Deus” encontra só em Cristo a sua completa e perfeita expressão (Irineu). A segunda parte da tese é um claro reportar-se a Irineu. O ponto de partida está na exegese de Gênesis 1.

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1. Fundamentação Bíblico-Patrística

 

            O Concílio não menosprezou os dados da Revelação bíblica e a doutrina dos Santos Padres e dos Concílios da Igreja, antes tomou-as a título de fundamentação do que se propõe postular, contudo buscando atualizar toda essa documentação eclesial, redirecionando-a num enfoque mais adequado ao homem contemporâneo[22] . Em verdade, podemos observar no sintético mas denso número 22 a citação de 25 trechos da Sagrada Escritura coordenados em torno do tema central proposto. De igual modo, é possível recolher diversas passagens conciliares de Calcedônia e do Constantinopolitano III e um texto interessantíssimo de Tertuliano, por onde desejamos iniciar nossas considerações. Assim reza literalmente o primeiro parágrafo do número 22:

Na realidade o mistério do homem só se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado. Com efeito, Adão o primeiro homem era figura daquele que haveria de vir[23], isto é, de Cristo Senhor. Novo Adão, na mesma revelação do mistério do Pai e de seu amor, Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação. Não é portanto de se admirar que em Cristo estas verdades encontrem sua fonte e atinjam seu ápice.

Citando Tertuliano, o Concílio reassume uma verdade profunda e esquecida pela Escolástica naquilo que tange à essência própria do Cristo. O homem é criado à imagem do Cristo e não o Cristo encarnado à imagem do homem[24]. Isso porque o verdadeiro Homem é Cristo e nós fomos feitos à sua imagem e semelhança. Ora, o que conta principalmente não é a ordem cronológica de Adão criado por Deus, mas a ordem lógica do Cristo eterno, anterior a Adão, que imprimiu Sua imagem divina à nossa humanidade. Daí o sentido do texto conciliar quando diz: «Adão o primeiro homem era figura daquele que haveria de vir». Adão foi o primeiro homem na dimensão espaço-temporal, não o primeiro homem no sentido absoluto[25]. Ele simplesmente prefigurou o Homem que deveria vir depois dele, a saber, Jesus Cristo. Assim, sendo Jesus o Homem no sentido pleno da palavra, só Ele «manifesta plenamente o homem ao próprio homem».

            Mas a citação de Tertuliano desce a considerações bem mais minuciosas ainda. Cuida de investigar e lançar luzes sobre a expressão imagem e semelhança. Escrevendo contra a proposta dualístico-gnóstica, esclarece que o valor de nossa imagem e semelhança repousa também sobre o corpo.  

Tertuliano segue a mesma linha de Irineu. Sua antropologia contempla a unidade do ser humano, focalizando-o em sua dimensão corporal, carnal[26]. O homem modelado do barro (cf. Gn 2,7) é carne, corpo vitalizado pelo sopro da vida. Para Tertuliano, o ser humano é, essencialmente, corporalidade animada pelo hálito divino. «A alma não é um princípio autônomo», mas, vitalizador do corpo. Não existe uma relação de subordinação entre o corpo (proprietas generalis) e a alma (partitio specialis), mas, de comunhão, de unidade. O ser humano é um todo de corpo e alma. O acento na dimensão carnal da unidade humana fará com que Tertuliano veja na «carne o eixo da salvação (De carnis resurrectione, 8)».

            O corpo é a ponte que une os dois Adãos: o primeiro (Adão) e o segundo (Cristo)[27]. O corpo adâmico, obsoleto, se transformará em corpo espiritual pela ressurreição de Cristo. Este é o Adão verdadeiro, «ômega», que esclarece, ilumina e realiza o Adão «alfa», primeiro. Segundo Tertuliano, quando Deus «modelava o barro, pensava em Cristo, o homem futuro (De carnis resurrectione, 6)»[28]O presente de Adão é compreendido a partir do futuro de Cristo. No corpo contingente de Adão, exposto às vicissitudes da vida, estava latente aquele que futuramente iria assumi-lo e levá-lo à consumação. A ênfase de Tertuliano sobre a corporalidade e a ressurreição da carne possui um pano de fundo apologético, visto que a gnose «não acredita na redenção da matéria humana»[29].

            Também, para Tertuliano, o homem, imagem e semelhança de Deus, foi feito pelas duas mãos divinas: o Filho e o Espírito. Tertuliano enxerga, na imagem, o Filho, a dimensão corporal, visível; e, na semelhança, a ação e a dinamicidade do Espírito. «Imagem e semelhança se referem respectivamente ao Filho que virá na carne e ao Espírito que opera a obra da santificação». São vestígios de uma percepção trinitária do ser humano. O teólogo de Cartago também faz uma distinção entre imagem e semelhança de modo análogo a Irineu. A imagem se refere à dimensão «inassimilável» e a semelhança à «assimilável». A semelhança, perdida pelo pecado, é restituída através do batismo com o dom do Espírito. Distinguir não significa fazer uma cirurgia, porque o binômio imagem-semelhança aponta para a «mesma economia», «vocação» e «aliança». O homem na sua totalidade é imagem e semelhança de Deus.

            Na concepção da abordagem irineana-tertuliana, há uma forte ligação entre antropologia e cristologia. Não se pode definir o homem, ignorando sua referência a Cristo. O ser humano, «enquanto corpo-carne», é compreendido como imagem de Deus a partir da imagem por excelência, Cristo. Existe uma valorização da dimensão imanente, material, horizontal, corporal da vida e da humanidade de Jesus. A perspectiva ireniana-tertuliana segue a tradição bíblica, destoando do pensamento gnóstico vigente A percepção da imagem de Deus, na corporalidade humana presente na abordagem ireniana-tertuliana, não será levada adiante pela escola alexandrina que a verá na alma.

 

2. Visão posterior acentuada por Agostinho e a abordagem Escolástica

 

Santo Agostinho, influenciado pela filosofia platônica, concebe o homem como uma composição de corpo e alma. Esta é a parte augusta do homem e lugar no qual se encontrará registrada a imagem de Deus que será vista a partir da unidade e da trindade das pessoas divinas. Com Agostinho, tem-se a passagem de uma perspectiva cristológica para uma perspectiva trinitária da imagem de Deus.

            O bispo de Hipona não define o homem baseando-se em apenas uma das partes, corpo ou alma, mas como um composto de corpo e alma. Estas duas realidades são distintas, mas necessárias para a constituição do homem. O corpo é a parte inferior e a alma superior do composto humano. A nobreza do homem se encontra na alma, sua melhor parte, sede da racionalidade e da imagem de Deus. É através da alma que o homem se mostra superior e se diferencia dos animais. A alma não é preexistente nem divina, mas criada como o corpo. Este é feito de uma matéria preexistente e aquela criada do nada. Assim como Deus domina o mundo, a alma domina o corpo. O senhorio que Deus exerce sobre o mundo, que o senhor feudal exerce sobre os seus súbitos, é transplantado para a relação corpo-alma. Esta domina e exerce um senhorio sobre aquele. Existe uma relação hierárquica entre o corpo e a alma. Aquele é instrumento e servo nas mãos desta. O corpo é uma realidade espaço-temporal que está a serviço da alma racional, parte análoga a Deus. A alma é a bússola que orienta o corpo. Embora este seja a parte infra-humana, não se percebe, em Agostinho, um olhar desdenhoso e negativista para o mesmo, porque foi criado por Deus. O corpo é um bem que a alma racional administra e que fará parte da visão beatífica de Deus, quer dizer, é um componente que também ressuscitará.

            O homem, particularmente a alma racional, parte mais digna do composto humano, é imagem do Deus uno e trino. Em Agostinho, a imagem não se identifica com uma pessoa divina da trindade, mas com a tri-unidade das pessoas. A alma racional é imagem de Deus pela capacidade de amá-lo e conhecê-lo. Como imagem, o homem está naturalmente orientado para Deus. “É capaz e pode participar do ser de Deus”. O homem criado à imagem de Deus, por sua alma racional, é chamado a viver divinamente. O ser imagem é dom de Deus e não uma conquista pessoal, racional, embora o bispo de Hipona admita que a imagem se localiza na parte racional do homem, isto é, na alma. A condição de imagem não é temporária, perecível, mas indelével, indestrutível, imortal. A imagem possui um caráter ontológico. O pecado de Adão não deletou a imagem, mas a distorceu. É Cristo quem a reconstitui. A imagem impressa na criação do homem é atualizada e renovada pela graça. Agostinho admite que a alma racional, como imagem da trindade, é “imperfeita, contudo imagem”. A imagem chegará à sua plenitude na visão beatífica.

            A teologia escolástica, influenciada por Agostinho, tem uma ótica metafísica, racional, trinitária para a imagem de Deus. O ser humano, por sua alma, é imagem da trindade. O corpo porta alguns matizes da imagem, embora não seja o lugar da mesma. Como imagem de Deus, o homem traz dentro de si a capacidade de amar e conhecer a Deus. O homem é um ser metafísico, capaz de Deus. A escolástica retoma o tema da distinção entre imagem e semelhança presente na patrística. O acento cristológico que desempenhou um papel importante em Irineu, Tertuliano e na escola de Alexandria, secundário em Agostinho, praticamente desaparece com a escolástica. A teologia escolástica da imagem baseia-se não em uma pessoa divina da trindade, mas na trindade toda.

 

3. As considerações do Concílio

 

O Vaticano II é o primeiro concílio a tratar explicitamente do homem como imagem de Deus. A Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS), em sua primeira parte, propõe uma síntese dos principais temas da antropologia cristã, cujo fundamento encontra-se na cristologia. O Vaticano II trata o tema da imagem de Deus em uma perspectiva «bíblico-teológica».

            Na ótica do concílio, o ser humano é apresentado como um «mistério a ser esclarecido» e, não, um problema a ser resolvido (GS 10,3)[30]. A questão se refere à identidade do homem (quem é o homem?). O mistério humano tem seu prólogo na definição bíblica do homem como imagem de Deus (cf. GS 12,3) e seu epílogo, no mistério cristológico (GS 22,1). O mistério humano é um reflexo do mistério divino.

            O Vaticano II (GS 12) reafirma a centralidade antropológica da criação. Como imagem de Deus, o homem é constituído por este como senhor das realidades terrenas, as quais devem ser «dominadas e usadas» como forma de glorificação a Deus. Ainda como imagem de Deus, é capaz de amá-lo e conhecê-lo (GS 12,3). O concílio retoma o caráter dinâmico, representativo e dialogal da imagem de Deus. O centro da concepção cristã do homem é sua condição de imagem de Deus.

            A antropologia cristã tem seu desfecho na cristologia. A pergunta sobre a identidade do ser humano é esclarecida pelo mistério cristológico. «O mistério do homem se esclarece à luz do mistério do Verbo encarnado» (GS 22,1). A fé cristã não postula uma definição abstrata e idealista do ser humano e, sim, concreta e a partir de seu referencial, Cristo, novo Adão, homem realizado e perfeito que revela o homem ao homem. Este se torna cônscio de sua vocação e de seu fim através de Cristo, imagem de quem o homem é chamado a ser. O pecado deformou a semelhança divina dos filhos de Adão, mas, em Cristo, a mesma é restaurada (GS 22,2). Assumindo a natureza humana, Cristo a eleva em seu grau máximo de dignidade, demonstrando seu quilate axiológico. «Criados à imagem de Deus todos os homens têm a mesma natureza e origem»(GS 29,1) e devem ser tratados com a mesma dignidade, pois existe uma igualdade fundamental que abarca a todos.

            O cristão, feito à imagem de Cristo, é impelido pelo Espírito a fim de vivenciar «a nova lei do amor» (GS 22,4). O Espírito renova o homem interiormente e o faz viver sua vocação divina de imagem de Deus. O ser humano se auto-reconhece imagem de Cristo, à luz do Espírito. «É impossível ver a Imagem do Deus invisível a não ser por iluminação do Espírito».

            O ser humano, em sua unidade de corpo e alma (cf. GS 14,1), é criado à imagem de Deus e, consequentemente, à imagem de Cristo. A imagem não se localiza em um compartimento, mas no homem todo. Com a encarnação, Cristo «se uniu de algum modo a todo homem» (GS 22,2) e ao homem todo. Cristo é o fundamento da antropologia cristã que concebe o homem na unidade de sua constituição: corpo-alma.

 

Conclusão

 

            O tema da imagem de Deus passou por várias nuances ao longo da história da teologia. A abordagem ireniana-tertuliana identificou a imagem no corpo, mas, desde a escola de Alexandria até o período medieval, percebeu-se a mesma na alma. A patrística analisou a imagem a partir do viés cristológico, demonstrando uma ligação entre cristologia e antropologia. Contudo, Agostinho promoveu uma guinada da perspectiva cristológica para a trinitária. A análise agostiniana da alma, como imagem da trindade, influenciou a teologia Ocidental.

            Pode-se perceber que, historicamente, houve um afastamento da concepção bíblica da imagem de Deus. Esta foi se deslocando da totalidade para as dimensões que constituem o homem. Preocupou-se mais em querer definir a constituição interna, a natureza do homem, por influência de correntes filosóficas, do que com sua condição de criatura. Assim, a imagem foi ganhando um caráter mais ontológico, estático, racional, distanciando-se da dinamicidade e representatividade bíblicas. Todavia, apesar dos diferentes matizes históricos sobre a imagem, permanece a visão de que o homem deve ser visto sob o desígnio criador e salvador de Deus. O ser humano, cristicamente, não pode ser analisado como uma realidade hermética, isolada, alheia ao criador. Criado à imagem de Deus, o homem está, naturalmente, ordenado para o mesmo, ainda que não tenha consciência disso. O homem tem uma vocação escatológica: participar da vida divina. É aqui que a imagem-cópia se encontra com a imagem-modelo. Através da cristologia, a antropologia pode chegar a sua imagem-arquetípica, a teologia.

Quando o Concílio nos diz que deseja iluminar o mistério do homem à luz de Cristo, implicitamente reclama a nossa atenção sob Cristo, fundamento imutável e, portanto, a chave, o centro e o fim da história. Fundamento portanto também da essência do homem, de quem procura esclarecer o mistério[31].

As abordagens precedentes, enfocadas pela patrística e escolástica, têm muito valor teológico e não podem ser abandonadas porque ajudam a esclarecer muitos pontos obscuros do ser humano. No entanto, não podemos jamais nos esquecer que o ser humano em si nada significa se prescindisse de Deus. O ser humano em sua essência deve, necessariamente, encontrar seu ponto de apoio antropológico no Homem Jesus. «Em nenhum caso se fala da ordem da criação o do homem como perfeita e completa em si mesma sem relação intrínseca com Jesus»[32]. 

O final do cap. 1 da constituição Gaudium et spes (n. 22) coloca a antropologia à luz da cristologia: o mistério do homem se clarifica à luz do Verbo encarnado; neste contexto vem citado o belíssimo texto de Tertuliano ao qual fizemos referência a pouco. Diz também que todas as verdades sobre o homem encontram em Cristo a sua fonte e seu termo: portanto também a verdade sobre sua criação e imagem e semelhança divina. O tema porém não vem totalmente esclarecido (somente em GS 22 parag. 2 se fala da restauração da semelhança divina deformada pelo pecado). Em todo caso, o concílio, também com estas afirmações um pouco genéricas, indica a validade de um caminho pelo qual vale a pena avançar[33].

Todos esses textos deixam bastante clara a intenção do Concílio. Não se trata de abandonar os esquemas antigos, transmitidos ao longo dos séculos pela Tradição eclesiástica e postulados pelo Magistério ordinário da Igreja nos concílios precedentes. Trata-se, antes, de adicionar o enfoque relacional esquecido pelas eras precedentes. A constituição Gaudium et spes, absorvendo o patrimônio da Tradição, dá um passo a mais: «La relación entre Cristo y el hombre presupone que este último posee una verdadera consistencia creatural y una verdadera libertad, no a pesar, sino en virtud de su vinculación a Cristo»[34]. 

            De fato, esse é um postulado central nas reflexões conciliares presentes na Gaudium et spes. Não existe uma natureza humana hermética, não se concebe uma antropologia fechada em si mesma, um homem cem por cento autônomo em relação a Deus. Ao contrário, a autonomia humana se funda exatamente na relação que o homem trava com a divindade. Os esforços precedentes de se investigar o ser humano em si mesmo, uma natura especificamente humana, não levaram muito em consideração essa proposta relacional. O homem foi criado por Deus com uma intenção divina. Não foi arbitrariamente lançado à existência e abandonado pela divindade. Deus criou a humanidade em Adão com um propósito e não desistiu desse propósito. Fez-nos autônomos mas nossa autonomia não implica ruptura, desligamento com Ele. Nossa autonomia não se funda numa separação com aquele que nos criou e jamais poderia anular os desígnios de quem nos pensou desde a eternidade.

            Dessa forma, imaginar uma antropologia que não contemple a cristologia é falsear toda e qualquer proposta sobre o homem. Mais do que acentuar, como fizeram a patrística e a escolástica, a dimensão corporal ou da alma, o Concílio aposta na chave revelativa da Sagrada Escritura, que vê o homem em sua unidade substancial, e ressalta com veemência a abertura dessa unidade humana ao transcendente. E aqui, vale dizer, o transcendente não consiste num elemento acessório ou acidental, que pode ou não existir na constituição humana, mas consiste num aspecto intrínseco a tal unidade. O ser humano é humano porque é aberto ao transcendental. 

            A conexão do humano com o divino é feita a partir e pelo Cristo. Ele é o Homem inteiramente relacionado com Deus. A sua humanidade não prescinde da divindade. Ele é verdadeiramente Homem exatamente porque sua natureza própria se mantém em sistema relacional com o Pai. A natureza humana não está em oposição ou contraste com a dimensão espiritual. Karl Rahner, Henri de Lubac e tantos outros teólogos insistiram sobre esse fato: por natureza somos voltados ao transcendente, já que fomos feitos à imagem e semelhança de Jesus Cristo. 

Feito conforme à imagem do Filho que é o Primogênito entre muitos irmãos, o homem cristão recebe «as primícias do Espírito» (Rm 8, 23), que o tornam capaz de cumprir a nova lei de amor. Por esse Espírito, «penhor da herança» (Ef 1, 14) o homem todo se renova interiormente, até a «redenção do corpo» (Rm 8, 32). 

 

 

BIBLIOGRAFIA

LADARIA, L. Antropologia Teologica, Casale Monferrato 1995.

__________. Jesucristo, salvación de todos, Madrid 2007.

__________. L’uomo alla luce di Cristo nel Vaticano II, in: LATOURELLE, R. Vaticano II: bilancio e prospettive, Assisi 1987, pp. 939-951.  

 

Imagem

A categoria de «imagem» representa indubitavelmente o centro da antropologia cristã. Mas não se poderia tratá-la adequadamente sem a ela fazer referência à pessoa e obra de Jesus Cristo.

Segundo o ensinamento do Concílio Vaticano II, «somente no mistério do Verbo encarnado encontra plena luz o mistério do homem» (GS 22). Quando nos referimos ao homem como imagem e semelhança de Deus, conforme Gênesis 1, 26-27:

1. não se pretende tanto dar uma definição, mas salientar a dimensão essencial e típica que é constituída da relacionalidade. E se faz a partir do dado primordial da obra criada: se Deus deu a vida ao homem o fez porque quis que o homem fosse o partner de uma aliança destinada a durar para sempre. Sob esta afirmação se derivam outras complementares: 

 2. existe uma certa conformidade entre a cópia e o exemplar (Deus), o que implica que o homem detém o papel de representante de Deus diante da inteira criação;

 3. é chamado a condividir com o Criador o exercício da soberania sobre o mundo;

 4. o desejo de Deus, que dá ao homem a possibilidade de descobrir a própria essencial dimensão religiosa, representa por fim a prova de uma pertença, de uma dependência e destinação radical do homem a Deus;

 5. a dignidade e o valor intangíveis da pessoa humana, com as qualidades e as capacidades mais peculiares como a inteligência, a vontade, a liberdade e o amor solidário, encontram na categoria de imagem o seu fundamento último e mais pertinente.

A tradição cristã admite que só Cristo é a verdadeira e perfeita imagem de Deus (cfr. Col 1, 15a; 2 Cor 4, 4; Hb 1, 3a): o título se remete diretamente à função de Revelador definitivo de Deus, competente a Jesus em razão de sua identidade de Filho pré-existente que, mesmo encarnado, vive na mesma comunhão amorosa com o Pai no Espírito Santo. Assim, somente Ele está em grau de fazer a divindade conhecida e acessível aos homens. Por isso,

1. O homem atingindo, por Cristo, a função mediadora na criação (cfr. 1 Cor 8, 6; Col 1, 16; Jo 1, 3.10; Hb 1, 2), se configura em imagem e semelhança a Cristo (verdadeiro Homem e exemplar arquetipal). A criatura humana é imagem de Deus também pelo motivo da própria capacidade de exercitar um certo senhorio sobre as outras criaturas (que não se entende manter uma relação de opressão frente às outras realidades criadas).

2. Quando o Cristo, centro e o fim de toda a criação, assinala o homem faz com que este, pelo batismo, entre em conformidade com a sua Imagem e Semelhança, ainda que esse processo somente se totalize na Parusia.

 

Imagem de Deus

 

Segundo o testemunho bíblico, a imagem é o distintivo do homem em relação às outras criaturas. O texto do Gênesis apresenta a criatura humana como vértice e coroa da obra criadora (essa realidade é “muito boa”), criatura especial, fruto de uma privilegiada “auto-consultação” divina: “Façamos o homem à nossa imagem” e, nessa, lançou o seu sopro divino (Gn 2, 7).

O homem é também imagem de Deus pela capacidade de escutar o Criador e de lhe responder; o homem pode ser interlocutor de Deus, pode entrar em relação pessoal com a divindade. E não somente de relacionar-se com Deus, mas capaz de entrar em relação e de fazer comunhão com o outro, como mostra a evidente diferenciação sexual que, pela vontade divina, caracteriza o ser humano. Dessa forma, pode-se dizer, o homem é estruturalmente orientado ao encontro, ao diálogo.

Contudo, aquilo que melhor revela a singularidade do homem como imagem de Deus é a sua dimensão espiritual:

1. Inteligência e vontade;

2. A possessão da consciência e a capacidade de exercer a liberdade.

História da expressão

No NT o tema da imagem vem aprofundado em sentido cristológico: é Jesus a imagem perfeita de Deus (2 Cor 4, 4) e os fiéis são chamados a tornarem-se semelhantes ao Cristo para serem novas criaturas, homens novos. 2 Cor 4, 3-4: «E se o nosso Evangelho permanece velado, está para aqueles que se perdem, aos quais o deus deste mundo vedou a mente incrédula, para que não vejam o esplendor do glorioso Evangelho de Cristo que é imagem de Deus».

Na época patrística registram-se diversas interpretações do tema da imagem de Deus, nas quais se utilizam também dados provenientes da cultura helenística.

- Irineu distingue entre imagem, que se refere à possessão do intelecto e da liberdade, e semelhança, que indica o dom da graça; isto não para separar os dois aspectos, mas para exprimir que no único plano salvífico divino o homem vem restituído e sanado à comunhão com Deus, perdida pelo pecado, graças a Cristo que recapitula em si todas as coisas.

- Clemente Alexandrino afirma que a imagem é a condição humana, enquanto a semelhança respeito a Deus se torna possibilidade no homem somente mediante o batismo.

- Para Gregório de Nissa, a imagem indica o homem como resultado do esforço que ele faz para recuperar a primitiva perfeição.

- Agostinho verá o homem como imagem da Trindade, dada a sua particular estrutura espiritual, pela qual coexistem no único sujeito a co-presença do intelecto, memória e vontade, em paralelo à vida íntima de Deus caracterizada pela pluralidade dos distintos (Pai, Filho e Espírito). Dá-se, portanto, uma analogia psicológica.

- Com Tomás de Aquino, no período escolástico, a reflexão teológica sobre o tema da imagem atinge uma particular profundidade: uma vez que Deus é a causa de todas as coisas, tudo carrega em si um reflexo do Criador.

1. Enquanto, porém, as criaturas não racionais reportam-se ao Deus trinitário  per modum vestigii, no homem resplandece uma maior aproximação ao Criador  per modum imaginis, porque criado com a capacidade de produzir o verbo mental com o intelecto e o amor com a vontade;

2. Em virtude de seu ser imagem de Deus, recorda Tomás, o homem é naturalmente aberto ao conhecimento de Deus e orientado ao amor divino. É conduzido à perfeição da graça, que o faz imagem de Deus mais perfeita, ainda que conserve aqui o seu estado de «viator»;

3. A imagem de Deus, ainda conforme Tomás, torna-se aperfeiçoadíssima no estado de glória, o que não significa dizer que o homem atinja um conhecimento totalmente perfeito do Criador. Pode-se portanto falar de uma gradualidade da realzação da imagem de Deus.

Também o Concílio Vaticano II faz uso desta temática, ao afirmar:

1. Que o homem, em virtude de ser imagem de Deus, «é capaz de conhecer e amar o próprio Criador (...) e foi constituído acima de todas as criaturas, como senhor delas» (GS 12).

2. Recorda também ques estas prerrogativas do homem foram danificadas pelo pecado mas restauradas por Cristo. Enquanto imagem de Deus, o homem goza de uma grandíssima dignidade e responsabilidade pela organização e manutenção do planeta.

É, ainda, de grande interesse teológico colher a orientação das diversas tradições cristãs sobre o tema da imagem:

- A tradição Oriental afirma que o homem é imagem de Deus em virtude dos dons naturais e sobrenaturais recebidos de Deus. Estes dons constituem uma riqueza que deve frutificar a vida de todo crente. Tal «patrimônio», ofuscado pelo pecado e ripristinado pela graça, conduz o homem para a visão beatífica de Deus.

Aqui o acento é posto:

a. de uma parte, sobre a grandeza dos dons ao homem doados;

b. de outra parte, sobre o dinamismo do crente que deve fazer frutificar o germe divino recebido, isto é, uma vez que fora constituído imagem «tornar-se aquilo que se é».

- A tradição teológica da Reforma protestante que, embora considerando o ser imagem de Deus como um dom recebido pelo homem no início de sua existência, insiste na desordem causada pelo pecado original: a imagem de Deus no homem é destruída! Não resta nenhum «resíduo»; contudo o homem não perde a capacidade de relacionar-se com Deus, graças à benevolência de Cristo.

Mas a recuperação do ser imagem de Deus só se dará na glória. O acento aqui colocado está nas conseqüências negativas do pecado original e na absoluta gratuidade do agir divino sobre o homem pecador.

- A tradição católica, adotando uma prospectiva intermediária entre o otimismo do Oriente e o pessimismo da tra­dição reformada, considera o ser imagem de Deus como um todo de qualidades, capacidades, abertura e dons naturais que substancialmente não foram perdidos com o pecado original, ainda que este tenha certamente «ferido» o homem. A salvação operada pelo Pai por meio do Filho no Espírito cura e eleva o homem; este, depois da morte e ressurreição de Cristo, pode de fato chamar Deus de Abbá porque se tornou verdadeiramente «filho no Filho».

Aqui o acento se coloca:

1. sobre a permanência da singular identidade e especial dignidade do homem, que conserva mesmo depois do pecado original o lugar particular no universo de criatura amada e desejada por Deus; posto que «natu­ralmente» lhe foi dado quando assinalado por Deus;

2. mas juntamente vem reconhecida uma dignidade ainda maior que nasce por causa de Cristo, que é a imagem perfeita do Pai e que, longe de desprezar a condição humana, assumiu-a propriamente e elevou-a a um nível altíssimo.

Certo, dentro desta história terrena, o homem não poderá experimentar a profundidade e a grandeza do ser imagem de Deus propriamente e nunca as experimentará perfeitamente; nesse sentido, o homem é remetido para além da história terrena, para uma pátria celestial onde se adequará melhor ao desígnio pelo qual foi criado.

 

 

[1] Enquanto os teólogos protestantes, de forma generalizada, sublinham o caráter exclusivamente simbólico de Gen 2-3, os católicos, por sua vez, acentuam seu caráter de etiologia histórica – expressão forjada por Rahner - ou seja, “uma etiologia que não só caracteriza acertadamente a condição presente (o presente da humanidade é como se tivesse sido produzido por um estado), mas indica realmente a origem desta situação em um fato que aconteceu em um tempo determinado”. 

[2] Flick-Alszeghy.

[3] Segundo Ruiz de la Peña, “encontram-se firmemente testemunhados pela Revelação veterotestamentária: a culpabilidade humana converteu o mundo em um reino de pecado; este é um fato pessoal e social: suas origens se confundem com as da própria humanidade”.

[4] Ruiz de la Peña.

[5] Ruiz de la Peña; ladaria; flick-alszeghy.

[6] O modelo de Cristo como “exemplo”. Para Agostinho, Cristo é exemplo e sacramento.

[7] Ruis de la Peña, Flick-Alszeghy, Ladaria.

[8] DS 1510-1516.

[9] “O Concílio não quis definir a essência do pecado original para não interferir nas questões entre as escolas, mas definiu os efeitos do mesmo: esta é a razão pela qual muitas perguntas estão sem resposta” Cf. Ladaria.

[10] Flick-Alszeghy.

[11] Cf. DS 1946ss.

[12] DS 3897.

[13] Cf.  Ladaria.

[14] Ruiz de la Peña; Ladaria.

[15]  Quanto segue pode ser encontrado precisamente em L.F.Ladaria, Teologia del pecado original y de la gracia,  106-131.

[16] Ladaria.

[17] Cf. LG 62: “...assim, também a única mediação do redentor não exclui mas suscita nas criaturas uma diversa cooperação que participa da única fonte”. A única mediação de Cristo não é exclusiva mas inclusiva. Cf. Flick-Alszeghy.

[18] Ladaria recorda que, ao definir o pecado original com os termos “privação de graça”, é descrito de modo bastante explícito a realidade do pecado já que a graça equivale à amizade com Deus e sua privação equivale à privação de sua amizade, à inimizade com deus. Quem não está na graça de Deus está na “desgraça”.

[19] Ruiz de la Peña.

[20] O Antigo Testamento tinha falado «do homem criado à imagem e semelhança de Deus, o homem plasmado da terra e tornado vivente pelo sopro da vida» (cf. Gn 1, 26; 2, 7). O Novo Testamento não explica o porquê ou como se acha esta imagem de Deus no homem, não sublinha ou explica em que coisa consiste essa imagem de Deus. Ao invés, dá uma leitura desta imagem, colocando o aspecto não mais sob o homem enquanto imagem de Deus, mas sob o homem imagem de Cristo: «Ele é imagem do Deus invisível, gerado antes de toda criatura; para que por meio dele todas as coisas sejam feitas, seja nos céus ou na terra, aquelas visíveis e invisíveis» (Col 1, 15-16ss). «Aqueles que ele conheceu desde sempre, também os predestinou a se configurarem com a imagem de seu Filho, para que este seja o primogênito numa multidão de irmãos» (Rm 8, 29). «Tudo foi feito por meio dele, e sem ele nada foi feito de tudo o que existe» (Jo 1, 3). Será uma tarefa dos Padres da Igreja antiga explicar em que coisa consiste esta imagem e semelhança de Deus.

[21] Tertuliano, no seu tratado De carnis resurrectionis, escreveu: «Quodcumque limus exprimebatur, Christus cogitabatur homo futurus», isto é, quando Deus criava o primeiro homem, já Cristo era pensado como homem futuro. Portanto, o número 22 da Gaudium et spes deve ser lido sob o prisma escatológico.

[22] «Ante todo aparece claro que el Vaticano II se coloca en una perspectiva distinta de la de los antiguos documentos eclesiales». L. LADARIA, Jesucristo, salvación de todos, 27.

[23] Cf. Rom 5, 14. Cf. Tertuliano, De carnis resurr. 6: «Quodcumque enim limus exprimebatur, Christus cogitabatur futurus».

[24] «Adão é figura do Filho que deve encarnar-se». L. LADARIA, L’uomo alla luce di Cristo, 943.

[25] «Não é Adão que explica Cristo, mas Cristo que explica Adão». L. LADARIA, L’uomo alla luce di Cristo, 943.

[26] «Diante da gnose, enfatizou a importância do corpo humano». L. LADARIA, Antropologia Teologica, 124.

[27] L. LADARIA, Antropología Teologica, 124.

[28] L. LADARIA, Antropologia Teologica, 128.

[29] L. LADARIA, Antropología Teologica, 128-129.

[30] Pode-se conferir também em L. LADARIA, Introdução à antropologia teológica, 49.

[31] L. LADARIA, L’uomo alla luce di Cristo, 940-941.

[32] L. LADARIA, L’uomo alla luce di Cristo, 951.

[33] L. LADARIA, Antropologia Teologica, 156.

[34] L. LADARIA, Jesucristo, salvación de todos, 38.

1. O testemunho da Sagrada Escritura

3. Reflexão sistemática: O pecado original, ruptura da amizade original com Deus e privação da graça para os homens.

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