A RESSURREIÇÃO
1Cor 15,14: Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé.
O mundo atual coloca-se contra a ressurreição1:
• O secularismo: consiste numa visão autonomista do homem e do mundo, que prescinde da dimensão do mistério, a negligencia e mesmo a nega. Este imanentismo é uma redução da visão integral do homem. A teoria imanentista não nega a presença divina, mas a torna ineficiente quando diz que ela não fornece nenhum conhecimento evidente. Além disso, uma vez que despreza os mistérios, reduz a realidade à dimensão terrena. Espinoza afirmava que “Deus sive natura”, isto é, “Deus, ou seja, a natureza”. Para ele, Deus é a natureza. O divino é imanente à natureza, está nela, no seu interior, formando como que um todo.
• “Penumbra teológica”: algumas interpretações novas dos dogmas, duvidando da própria divindade de Jesus Cristo ou mesmo da realidade da Sua ressurreição, e ainda trazem insegurança para a fé dos fiéis, estimulando-os à dúvida em muitas outras verdade de fé. No campo escatológico, muitos já desconhecem a verdadeira linguagem para falar sobre a relação existente entre a morte do cristão e a ressurreição. As dúvidas vêm, em muitos casos, de pregações, formações, homilias e catequeses. Há um conjunto de formas de incentivo tanto à verdade da fé quanto à sua destruição no fiel. É verdade que muitos duvidam se a morte conduz ao nada ou a uma nova vida. Entre os que pensam que há uma vida depois da morte, muitos a imaginam novamente na terra pela REENCARNAÇÃO2, de modo que o curso da nossa vida terrena não seria único. O INDIFERENTISMO religioso, favorecido pela “penumbra teológica”, duvida do fundamento de uma esperança na vida eterna, uma vez que suscita dúvidas sobre a verdadeira imagem de Cristo.
• O materialismo: o homem, à semelhança das demais coisas no espaço e no tempo, é totalmente material e com a morte há de desfazer-se completamente. Essa ideia vem sendo transmitida pelos meios de comunicação, nas escolas e universidades. A cultura atual que se desenvolve nesse contexto histórico procura por todos os meios deixar no esquecimento a MORTE e as INTERROGAÇÕES que a ela estão inevitavelmente ligadas. Por outro lado, a esperança vê-se abalada pelo PESSIMISMO acerca da própria bondade da natureza humana, o qual nasce do aumento de angústias e aflições. O mundo oferece: guerras, desordem, injustiça, fome, opressão, torturas, terrorismo, exploração do outro a qualquer custo, idolatria do lucro, fanatismo religioso, capitalismo religioso, ideologias anticristãs, escravidão pelos instintos e pela concupiscência, desorientação e destruição da pessoa mesma.
• Escatologia intramundana: essa tendência existe em certos teólogos da libertação que insistem de tal modo na importância de construir o reino de Deus no interior da nossa história, que a salvação que transcende a história parece passar para um segundo plano. Colocam o Reino de Deus numa sociedade sem classes, numa versão secularizada do pensamento de Marx. Com isso, o homem vê-se envolvido num messianismo temporal, uma forma de reino ligada à política e à realização social. Claramente se restringe o Evangelho à uma dimensão material do homem, opondo-se, de certo modo, à vida futura, o que seria, segundo o marxismo, o “opio do povo”. Na verdade, é o materialismo que priva o homem de motivos verdadeiros para edificar o mundo. A questão é: por que lutar, se não há nada que nos espere depois da vida terrena? “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos” (Is 22,13).
A Igreja ensina que não é lícito, por meio de um esquecimento do mundo futuro, criar uma versão meramente “temporalista” do cristianismo. O magistério propõe a NOÇÃO DE LIBERTAÇÃO “INTEGRAL”, que significa conservar simultaneamente o equilíbrio e as riquezas dos diversos elementos da mensagem evangélica, afastar-se e supercar as oposições falsas e inúteis entre a missão espiritual e a diaconia a favor do mundo, e viver a caridade para com o outro, procurando libertá-lo integralmente.
A resposta cristã às perplexidades do homem atual, e do homem de qualquer tempo, tem a Cristo ressuscitado como fundamento e está contida na esperança da gloriosa ressurreição futura de todos os que são de Cristo, a qual se realizará à imagem da sua própria ressurreição (cf. 1Cor 15,49). A nossa ressurreição será um acontecimento ecclesial em conexão com a parusia do Senhor, quando se completar o número dos irmãos (cf. Ap 6,11).
A parusia3 de Cristo, nossa ressurreição
• Atribui-se à ressurreição dos mortos, no NT, um momento temporal determinado (1Cor 15,23).
• Assinala-se um acontecimento concreto como momento da ressurreição dos mortos.
• Parusia: segunda vinda, ainda futura, do Senhor na glória, diferente da primeira vinda na humildade; a manifestação da glória (cf. Tt 2,13) e a manifestação da parusia (cf. 2Ts 2,8) referem-se à mesma vinda.
• Em oposição está a teoria da ressurreição na morte.
Teoria da “ressurreição na morte”
A hipótese da ressurreição na morte que, com matizes diversas, encontrou ampla acolhida, mas foi seriamente criticada pelos mais renomados teólogos4.
• Afirma uma ressurreição sem relação ao corpo que viveu e agora está morto.
• Os teólogos que propõem a ressurreição na morte querem suprimir a existência pós-mortal de uma “alma separada” que consideram como um resquício do platonismo.
• No NT, a parusia é acontecimento concreto conclusivo da história.
• “No último dia” (Jo 6,54), os homens, ao ressuscitarem gloriosamente, obterão a comunhão completa com Cristo ressuscitado. A ressurreição final será coletiva e simultânea. Este aspecto comunitário da ressurreição final parece diluir-se na teoria da ressurreição na morte, já que esta se teria convertido num processo individual.
• Os teólogos dessa teoria são atemporalistas, afirmando que depois da morte não pode existir de forma alguma tempo; reconhecem que as mortes dos homens são sucessivas, enquanto vistas a partir deste mundo, mas pensam que as suas ressurreições na vida pós-mortal, em que não haveria nenhuma categoria de tempo, são simultâneas.
• São Paulo fala aos Tessalonicenses sobre o destino dos mortos, deixando claro que a ressurreição está ligada ao futuro (anastêsontai: cf. 1Ts 4,13-18). De modo semelhante, se não hovesse nenhuma noção de tempo, depois da morte, nem que este seja meramente análoga ao terrestre.
• Tal teoria da ressurreição na morte não leva em conta a verdadeira corporeidade da ressurreição, uma vez que não se pode declarar verdadeiro um corpo5 que seja alheio a toda a noção de tempo. Entre a eternidade e o tempo existe uma conexão temporal.
A comunhão com Cristo imediatamente depois da morte segundo o NT
• Os primeiros cristãos, quer pensando que a parusia estava próxima quer considerando-a ainda muito distante, cedo aprenderam por experiência que alguns de entre eles eram arrebatados pela morte antes da parusia. Paulo consola-os (cf. 1Ts 4,16).
• A antiga concepção judaica acerca do sheol, no seu primeiro estágio de evolução, era bastante imperfeita. Pensava-se que, em contraposição com o céu, estava debaixo da terra. A partir daí formou-se a expressão “descer ao sheol” (Gn 37,35; Sl 55,16 etc).
• Simultânea a esta representação, começou a surgir a fé israelita de que a onipotência de Deus pode retirar alguém do sheol (1Sm 2,6; Am 9,2 etc). Por esta fé preparava-se a ideia da ressurreição dos mortos, que se expressa em Dn 12,2 e em Is 26,19, e que nos tempos de Jesus prevalece entre os judeus, com a conhecida exceção dos saduceus (cf. Mc 12,18). A fé na ressurreição introduziu uma evolução no modo de conceber o sheol, que já não se concebe como o domicílio comum dos mortos, mas é antes como que dividida em dois estratos, dos quais um está destinada aos justos e outro aos ímpios.
• Estado INTERMÉDIO: houve uma crise provocada pelos sermões de João XXII, de 1331 a 1334, nos quais afirmava que as almas separadas dos corpos vêem somente a humanidade de Cristo, na espera da ressurreição final. Tais sermões deram lugar à constituição “Benedictus Deus” de seu sucessor, o papa Benedito XII. Nesta, se afirma que as almas dos bem-aventurados (depois da purificação do purgatório se for o caso) gozam da visão da essência divina a partir de sua morte. Afirma-se também que os condenados vão em seguida à morte para o inferno (cf. DS 1000-1002/ Collantes 1328-1330). É importante frisar o seguinte:
• No NT, afirma-se um certo estado intermédio deste tipo quando se ensina a sobrevivência imediatamente depois da morte como tema diferente da ressurreição.
• Ao afimar a sobrevivência, sublinha-se, como ideia central, a comunhão com Cristo.
• Fl 1,21-24: “Pois para mim a vida é Cristo e a morte, lucro. Entretanto, se o viver na carne ainda me permitir um trabalho frutuoso, não sei o que escolher. Estou como que na alternativa. Pois de um lado desejo partir para estar com Cristo, o que é muito melhor. Por outros quisera permanecer na carne, o que é mais necessário para vós”. O estado pós-mortal só é desejável, porque no NT implica sempre (à exceção de Lc 16,19-31, onde o contexto é muito diferente a união com Cristo. O estado intermédio é concebido como transitório, sendo sem dúvida desejável pela união que implica com Cristo, mas de tal modo que permaneça sempre a esperança suprema da ressurreição dos corpos.
• “Este corpo será transformado” (Fl 3,21). “Porque é preciso que este corpo corruptível se revista de incorrupção e que este ser mortal se revista de imortalidade” (1Cor 15,53).
• A comunhão com Cristo é central:
◦ Jesus e o bom ladrão (Lc 23,43): Jesus quer receber o bom ladrão na sua comunhão, imediatamente depois da morte.
◦ Estêvão, ao ser lapidado, (At 7,56.59): afirma que espera ser recebido imediatamente por Jesus na sua comunhão.
◦ Há muitas moradas no céu (Jo 14,1-3): a ideia da comunhão com Cristo é central (Jo 14,6).
◦ Jesus exorta à vida eterna (Jo 14,23; 15,4). Com esse ensinamento, Jesus intensifica a comunhão para além da morte.
Imortalidade da alma e Ressurreição no atual contexto teológico
• A esperança escatológica é constituída de duas fases: a morte individual e o fim do mundo. Entre elas, subsiste um elemento consciente do homem, sujeito de retribuição, continuidade e identidade de subsistência entre o homem que viveu e homem que ressuscitará, que se chama “alma” (cf. Sb 3,1; Mt 10,28). Por causa dela, o homem concreto nunca deixa totalmente de existir.
• Em oposição, certos cristãos do séc. II, influenciados pelos gnósticos, se opunham à “salvação da carne”.
Para eles, a ressurreição era a mera sobrevivência da alma dotada de uma certa corporeidade6.
• Martinho Lutero admite a dupla fase escatológica.
◦ Sustenta que as almas continuam vivas entre a morte e a ressurreição final. Se bem que ele não era seguro quanto ao modo de conceber o estado da alma entre a morte e a ressurreição:
◦ Admitiu que os santos oram por nós no céu, mas também afirmou que as almas se encontram num estado de sono. A ortodoxia luterana conservou a dupla fase, abandonando a ideia do sono das almas.
◦ Defende o estado intermédio, mas entendendo-o de modo diferente da fé católica7.
• A tese da morte total. No séc. XX, pela primeira vez, alguns teólogos protestantes começaram a propagar a negação da dupla fase escatológica. Eles afirmavam que o homem não poderia apresentar nada de próprio perante Deus, nem as obras, nem sequer a própria imortalidade natural da alma; a seriedade da morte só se manteria se esta afetasse todo o homem e não apenas o corpo, uma vez que sendo a morte um castigo por causa do pecado e o homem pecador na sua totalidade, então deveria morrer totalmente. O novo esquema escatológico para esse grupo de teólogos é o da ressurreição somente, em lugar da imortalidade e da ressurreição juntas.
• A ideia de uma “dormição” do sujeito até a ressurreição final foi também uma hipótese que se levantou (assim pensam, no Brasil, por exemplo, os adeptos da “Congregação cristã no Brasil”).
• Ressurreição na morte. A tese da morte total apresentava muitíssimas dificuldades. Se o homem todo desaparecesse na morte, Deus poderia criar um homem completamente igual a ele, o que eliminaria entre eles a continuidade existencial. Assim o segundo homem não seria o primeiro. Por isso nas a teoria que afirma a ressurreição na morte, para que não surja um espaços vazio entre a morte e a parusia. Tal teoria, nascido em ambiente protestante e aceita por alguns teólogos católicos, é um tema desconhecido para o NT, já que este fala sempre da ressurreição na parusia do Senhor e nunca na morte do homem8. Também essa tese deve ser confrontada com a S. Escritura e com a Tradição.
• Contaminação helênica. Para justificar a teoria da única fase, tais teólogos colocaram a questão de que o esquema da dupla fase teria nascido por uma contaminação do helenismo. A única ideia bíblica seria a da ressurreição; a da imortalidade da alma procederia, pelo contrário, da filosofia grega. Propor a única fase, seria uma purificação da escatologia cristão do acréscimo proveniente do helenismo. É importante frisar que:
• A ideia da ressurreição é bastante recente na S. Escritura (Dn 12,1-3).
• Não se pode supor que só as categorias hebraicas tenham sido instrumento da revelação divina. Deus falou “muitas vezes e de modos diversos” (Hb1,1).
• Não é possível falar de uma mentalidade hebraico ou grega como se se tratasse de unidades simples. As imperfeitas concepções escatológicas dos Patriarcas foram sendo polidas pela revelação posterior. Por seu lado, a filosofia grega não se reduz ao platonismo ou ao neoplatonismo. Isto não se pode esquecer, já que existem muitos contatos dos Padres não só com o platonismo médio, mas também com o estoicismo. Por esta razão, haveria que expor de forma muito mais matizada tanto a história da revelação e da tradição, como as relações entre a cultura hebraico e a grega.
A Ressurreição segundo Santo Tomás de Aquino
Santo Tomás de Aquino (1225-1273) foi um presbítero italiano da Ordem dos Pregadores, considerado o maior teólogo e filósofo católico, e um dos 36 Santos Doutores da Igreja Católica. Seu amor a Deus e ao próximo é admirável, assim como ao estudo e ao ensino – e sobre este ponto, chegava a ficar horas absorvido em pensamentos, chegando mesmo a preferir um livro (o Comentário ao Evangelho de Mateus de S. João Crisóstomo) do que a cidade de Paris! (cf. TORRELL, Jean-Pierre, Iniciação a Santo Tomás de Aquino: Sua pessoa e obra, Ed. Loyola, S. Paulo 1999, 160-164). Ele trata de um modo amplo e profundo do tema da ressurreição de N. S. Jesus Cristo nas questões 53 a 56 da Parte III da Suma Teológica, sua obra magna. Costuma-se datar a redação desta parte de pouco antes da sua morte, entre 1272-1273. É fruto, portanto, do seu pensamento teológico maduro, revisto, consolidado. Eis a seguir algumas ideias relevantes apresentadas nos 16 artigos destas 4 questões, que aqui agrupo em 10 temas, de um modo sintético. Entre aspas citações textuais da obra, a partir da versão brasileira do Dr. Alexandre Correia.
1.Era necessária a ressurreição de Cristo – Em Lc 24,46 se lê que “o Cristo devia sofrer e ressuscitar dos mortos”, e Santo Tomás identifica 5 motivos para isso:
1º) “Manifestação da justiça divina”: que exalta “os que se humilham por amor de Deus” conforme Lc 1,52 – Ora, Cristo, movido pela “caridade e obediência”, se humilhou até a cruz (Fl 2,8).
2º) Confirmação da “nossa fé na divindade de Cristo”: pois se não fosse assim “vazia” seria a profissão de fé do cristão (1Cor 15,14); cf. 2Cor 13,4).
3º) Sustentação da nossa esperança: sendo Ele a nossa “cabeça” (Cl 1,18), haveremos também de ressurgir (cf. 1Cor 15,12; Jó 19,25.27) – num outro texto (o art. 1º da questão 56), Santo Tomás cita também Jo 5,21: “assim também o Filho dá vida a quem quer”, e no artigo seguinte sentencia: a sua ressurreição é a “causa eficiente” e “causa exemplar” da nossa. Santo Tomás trata novamente do tema da ressurreição mais adiante (no Suplemento), identificando 4 qualidades especiais de um corpo ressuscitado (impassibilidade; sutileza; agilidade; claridade – qq. 82-85), bem como na Suma contra os gentios (livro IV, cc. LXXIX-XCV), onde defende inclusive que “é conveniente” que ressuscitemos “na idade de Cristo, idade juvenil” (c. LXXXVIII,5).
4º) Inspiração para regrar a nossa vida: “assim também nós vivamos vida nova” (Rm 6,4; cf. vv. 9.11) – na Suma contra os gentios, Santo Tomás ensina que há também uma “ressurreição espiritual” pela fé que nos une ao Senhor (livro IV, c. LXXIX, 7; cf. Hb 2,4).
5º) Complementação da nossa salvação: ressurge “para nos dar a posse do bem”, conforme Rm 4,25: “ressuscitado para nossa justificação” – ou seja, “foi o começo e o penhor dos bens”. No art. 2 da questão 56 explica: justificação é “a ressurreição das almas”, ou seja, “a remissão da culpa” e “a vida da graça”.
2. Cristo devia ressurgir no 3º dia – Nos seus 3 anúncios da paixão, Jesus declarou que ressuscitaria ao 3º dia (cf. Mt 16,21; 17,23; 20,19). Para Sto. Tomás, o principal motivo foi “para que fosse confirmada a fé na verdade da sua humanidade e da sua morte”, garantida pelo intervalo de um dia inteiro e duas noites. Não passou por isto, porém, como “prisioneiro da morte”, mas “por vontade própria”.
O Santo Doutor – apoiando-se em S. Agostinho (IV De Trinit.) – contempla outro detalhe interessante: Jesus morreu quando já o dia entardecia – para mostrar que “pela sua morte destruiria as trevas da culpa e da pena”; ressurgiu quando já o sol começava a iluminar o ar (Mc 16,2) – a fim de que se aplicassem as palavras do Apóstolo: Noutro tempo éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor (Ef 5,8).
3. Cristo foi o 1º que ressurgiu – A Sagrada Escritura registra alguns milagres de mortos que voltaram à vida (reanimações), no Antigo e Novo Testamentos (cf. 1Rs 17,19ss; 2Rs 4,32ss; Mt 9,18; Lc 7,11; Jo 11; Hb 11,35). Jesus Cristo ressuscitou como “primícias dos que adormeceram” (1Cor 15,20). Qual a diferença? No 1º caso, trata-se de simplesmente voltar a viver, ainda que por um ato milagroso, mas “sujeitos a morrerem de novo” (o que Tomás chama de “ressurreição imperfeita”); já o caso de Cristo é inédito: ficar livre da “necessidade” e “possibilidade” de morrer de novo, ou seja, “chegou à vida perfeitamente imortal” (a “ressurreição perfeita”), como se lê em Rm 6,9: “Tendo Cristo ressurgido dos mortos, já não morre”.
Santo Tomás analisa neste ponto o complexo episódio de Mt 27,52. Apoiando-se em São Jerônimo (In Matth.) e SantoAgostinho (Ad Evodium), conclui que os mortos que saíram dos túmulos na hora da morte de Cristo “ressurgiram, mas para morrer de novo”.
4. Cristo foi a causa da sua ressurreição – Claramente, durante a sua vida pública, Jesus declarou: “Ninguém tira de mim a minha alma, mas eu de mim mesmo a ponho e tenho o poder de a reassumir” (Jo 10,17-18). Na condição de Filho ou Verbo de Deus, a sua divindade estava unida ao seu corpo e à sua alma humanas (união hipostática). Por isso, na ressurreição, “segundo a virtude divina, o corpo e a alma se reassumiram mutuamente” – é mais um sinal do “poder de Deus” (2Cor 13,4). É importante lembrar que, na teologia tomasiana (e, de resto, na teologia católica oficial), toda a Trindade age no mundo e na história, embora possamos atribuir a uma ou outra Pessoa – em nossa linguagem limitada pela contingência – uma ação específica.
5. Cristo ressuscitado tem um corpo verdadeiro, humano, o mesmo que antes – Segundo os relatos bíblicos, os discípulos ficaram espantados ao verem Jesus após a sua morte, pensando que era “algum espírito”; mas o próprio Senhor lhes dissipou as dúvidas: “Apalpai-me entendei que um espírito não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho” (Lc 24,39; cf. v. 37). Trata-se de um corpo humano verdadeiro, com todas as suas partes, e substancialmente o mesmo quando esteve conosco, do contrário a ressurreição teria sido “aparente” – a única diferença era “a glória da claridade”. É incisivo quanto à sua realidade física: “Ora, o corpo de Cristo, depois da ressurreição, foi realmente composto de elementos, tendo em si qualidades tangíveis...” (S. Th. III, q. 54, art. 2, ad 2; cf. id., art. 3). Assim, o Ressuscitado pôde comer peixe, não que precisasse de alimento, mas para atestar que era Ele mesmo. O ilustre Teológo insiste sobre este ponto mais adiante: “Portanto, se o corpo que a alma reassume não é o mesmo a que esteve unida, não poderemos falar de ressurreição, mas antes de assunção de um novo corpo” (S. Th., Supl., q. 79, art. 1, c.) – inclusive, p. ex., com “cabelos e unhas” (Supl., q. 80, art. 2).
Santo Tomás destaca (q. 55, art. 5) que Cristo quis aparecer “com muitas provas” (At 1,3). Explica que Ele quis provar a sua ressurreição tanto “pela autoridade da Sagrada Escritura, fundamento da fé” (Lc 24,4ss), como por sinais sensíveis que induzem à manifestação de alguma verdade: - já que os seus corações não estavam dispostos a crer facilmente (Lc 24,25); - e para que “o testemunho que dessem fosse mais eficaz”, conforme 1Jo 1,1-2. E sublinha logo em seguida (id., art. 6), respondendo a qualquer ceticismo ou racionalismo arbitrários, do passado e do presente: “Quanto às provas, também foram suficientes para declarar a sua verdadeira ressurreição...”.
A sua alma humana após a ressurreição também era verdadeira, pois nela vemos: - atividade da vida nutritiva (comeu, bebeu); - atividade da vida sensitiva (enxergava, ouvia, por isso saudava, respondia); - atividade da vida intelectiva (falava, discorria sobre as Escrituras).
6. O corpo de Cristo ressurgiu glorioso – O Pai lhe havia garantido: “Eu o glorifiquei e o glorificarei novamente” (Jo 12,28). O esplendor do seu corpo e alma ressuscitados é garantia do nosso futuro esplendor: “Reformará o nosso corpo abatido, para o fazer conforme ao seu corpo glorioso” (Fl 3,21; cf. 1Cor 15,12s). Tomás recorda ainda que já desde a sua concepção no ventre imaculado de Maria (Anunciação) a alma de Cristo era gloriosa “pela fruição perfeita da divindade”, mas quis nos escondê-la até se cumprir “o mistério da nossa redenção” na Paixão. No Compêndio de Teologia especifica que a sua glória de ressuscitado é maior do que será a nossa (cf. I, cap. CCXXXIX, 7; cf. Ap 21,23).
7. As cicatrizes – O artigo 4º da questão 54 (III Parte) aborda um interessantíssimo tema. A aparição do Ressuscitado a Tomé atesta a presença dos sinais visíveis de sua Paixão – as chagas (marcas) nas mãos, nos pés, no lado (Jo 20,27). Ao contrário do que poderia se esperar, Santo Tomás defende que Cristo “devia” ressuscitar com as cicatrizes – e aduz os seguintes motivos, apoiando-se sobretudo em S. Beda o Venerável, também Doutor da Igreja (Liv. IV):
1º) Para manifestar “perpetuamente o triunfo da sua vitória” – suas chagas têm um “esplendor especial”. Em outra obra, o Compêndio de Teologia, Sto. Tomás insiste que “aparecem com certa beleza” (I, cap. CCXXXVIII, 4). Por isso é possível que também vejamos um dia na glória celeste “as cicatrizes das feridas” nos corpos glorificados dos mártires (S. Agostinho, De Civ. Dei, XXII) – sinal não de deformidade, mas de dignidade!
2º) “Para confirmar o coração dos discípulos na fé da sua ressurreição”. Diz o Papa S. Leão Magno, Doutor da Igreja: “...foi em nosso proveito o ter tocado a quem via”. No art. 5º da questão 55 dirá que Tomé “viu uma causa e creu noutra: viu as chagas e acreditou em Deus”.
3º) “Para mostrar sempre, ao orar ao Pai por nós, que gênero de morte sofreu pelo homem”. Alude ao tema do “Sumo Sacerdote Misericordioso e Fiel” de Hb 2,17s; 4,14-16 etc.
4º) “Para relembrar incessantemente àqueles a quem resgatou com a morte a misericórdia de que usou para com eles” (“Ut sua morte redemptis quam misericorditer sint adiuti, propositis eiusdem mortis indiciis, insinuet”). Na sua obra Catena Aurea, Sto. Tomás cita S. João Crisóstomo que também assim interpreta: “Considera a clemência do Criador” (In Ioannem, hom. 86).
5º) Para as apresentar no dia do Juízo Final aos condenados: “Eis o homem a quem crucificaste” – e ao mesmo tempo: “Reconhecei o lado [...] aberto por vós e por causa vossa, sem, contudo, nele terdes querido entrar” (S. Agostinho, De Symbolo).
8. Cristo Ressuscitado não devia se manifestar a todos – Uma das questões que mais intriga os estudiosos de todos os tempos (teólogos e historiadores) diz respeito à manifestação de Jesus após a sua ressurreição. Em Atos 10,40-41 está escrito que quis se manifestar “não a todo o povo, mas às testemunhas que Deus havia ordenado antes”. Por quais motivos? Santo Tomás identifica uma razão central: há coisas que todos podem conhecer sem dificuldade (“lei geral da natureza”), mas há outras “por um especial dom da graça” (especial revelação por vontade divina), oferecido a alguns. Por isso, aqueles que foram agraciados pelo encontro com o Ressuscitado ao longo daqueles 40 dias tiveram igualmente a missão de dá-lo a conhecer aos demais.
A este respeito, Santo Tomás destaca o papel dos anjos (Mt 28,4-7; Lc 24,4-7), citando S. Hilário, Doutor da Igreja: “O anjo foi o primeiro mensageiro da ressurreição” (Super Matth.), e o papel das mulheres “que mais ardentemente amaram o Senhor” e, por isso, não se afastaram do sepulcro: “também foram as primeiras a ver o Senhor” – e até “abraçaram-lhe os pés” (Mt 28,9)!
9. Cristo após a ressurreição não quis conviver continuamente com os discípulos – De fato, as narrativas da ressurreição indicam que Jesus se manifestou poucas vezes após ressurgir dos mortos, e sobretudo onde sempre convivera com eles, na Galileia (Mt 28,7.10.16) e em Jerusalém (no Cenáculo). Nestes locais muitos dos seus seguidores estavam escondidos, com medo de retaliações. Por que não apareceu mais vezes? Para que “não parecesse ter ressurgido para a mesma vida que vivia antes” (cf. Lc 24,44). A consolação da sua contínua presença se dará apenas na vida eterna (cf. Jo 16,22). Assim se entende também porque Ele repreendeu a mulher que lhe queria tocar (Jo 20,17), ainda presa a uma visão meramente terrena, carnal.
(10) Por que Cristo quis aparecer a alguns de um modo diferente? – Intriga o episódio dos discípulos de Emaús: “ele se manifestou de outra forma” (Mc 16,12). Para Santo Tomás não há dúvida: aos que “estavam dispostos a crer”, Cristo se manifestou com “a sua forma própria”; mas os que estavam tíbios (frios) na fé, se apresentou com “forma diversa” – “fingiu que ia mais longe”, ou seja, “como se fosse estrangeiro”. Não se trata neste caso de “mentira”, mas “verdade figurada” (“a ficção significa alguma coisa”). Entretanto, ao participarem da fração do pão os seus olhos se abriram, “ensinando-nos assim que o participar à unidade do seu corpo tem o efeito de afastar todos os obstáculos suscitados pelo inimigo para nos impedir de reconhecer a Cristo” (S. Agostinho, De consenso Evang.).
À guisa de conclusão segundo Santo Tomás
A centralidade da fé na ressurreição de Jesus Cristo para o Cristianismo é indubitável: “Se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé” (1Cor 15,17). No cerne da pregação inicial dos Apóstolos (querigma), a partir de Pentecostes, está o anúncio: “A este Jesus, Deus o ressuscitou, e disto nós todos somos testemunhas” (At 2,32). Anunciam não uma teoria ou uma ideia, mas um fato, um evento (cf. PIÉ-NINOT, Salvador. La teologia fondamentale. Queriniana, Brescia 2002, p. 395.434). A natureza da origem da teologia pascal cristã foi assim recentemente sintetizada por um renomado teólogo: “O evento pascal funda a fé pascal. A fé pascal é a origem da mensagem pascal. A única mensagem pascal está presente nos diversos testemunhos pascais” (MÜLLER, Gerhard Ludwig, Dogmatica cattolica, Cinisello Balsamo: San Paolo, 1999, p. 342). A páscoa de Cristo é a manifestação perfeita, definitiva e admirável da MISERICÓRDIA DIVINA, que não somente o beneficia em sua humanidade, mas a todos nós, como se lê nas Escrituras: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, em sua grande misericórdia, nos gerou de novo pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos...” (1Pd 1,3; cf. JOÃO PAULO II, Papa, Encíclica Dives in misericórdia, n. 8).
Sem dúvida, a teologia da ressurreição de Cristo de Santo Tomás de Aquino, Doutor da Igreja, conserva todo o seus frescor, vigor e fulgor pois bebe, direta e abundantemente, das puras fontes da revelação (S. Escritura e Tradição), capazes de iluminar e inspirar os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares. De fato, em sua 1ª Encíclica, “Luz da fé” (Lúmen fídei, 29/06/2013), o Papa Francisco citou a Suma Teológica (S. Th. III, q. 55, a. 2, ad 1) para falar da “visão corpórea do Ressuscitado” (oculáta fídes = “a fé que vê”), isto é, os Apóstolos “puderam penetrar na profundidade daquilo que viam para confessar o Filho de Deus...” (n. 30).
Provas
1) O Túmulo vazio.
2) As Aparições de Jesus.
3) A Releitura testamentária
4)Testemunho apostólico:
4.1 Amor incondicional a Jesus Cristo.
4.2 A renúncia de tudo.
4.3 O anúncio: “A este Jesus, Deus o ressuscitou, e disto nós todos somos testemunhas” (At 2,32).
4.4 A coragem para enfrentar o Sinédrio e o império romano.
4.5 A bondade em seus corações.
Carta Recentiores episcoporum Synodi
1) A Igreja crê (cf. Símbolo dos Apóstolos) numa ressurreição dos mortos.
2) A Igreja entende esta ressurreição referida ao homem todo; esta, para os eleitos, não é outra coisa senão a extensão aos homens da própria Ressurreição de Cristo.
3) A Igreja afirma a sobrevivência e a subsistência depois da morte de um elemento espiritual, dotado de consciência e de vontade, de tal modo que o « eu humano » subsista. Para designar esse elemento, a Igreja emprega a palavra « alma », consagrada pelo uso que dela fazem a Sagrada Escritura e a Tradição. Sem ignorar que este termo é tomado na Bíblia em diversos significados, ela julga, não obstante isso, que não existe qualquer razão séria para o rejeitar e considera mesmo ser absolutamente indispensável um instrumento verbal para suster a fé dos cristãos.
4) A Igreja exclui todas as formas de pensamento e de expressão que, a adoptarem-se, tornariam absurdos ou ininteligíveis a sua oração, os seus ritos fúnebres e o seu culto dos mortos, realidades que, na sua substância, constituem lugares teológicos.
5) A Igreja, em conformidade com a Sagrada Escritura, espera « a gloriosa manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo » (cf. Const. Dei Verbum, I, 4), que ela considera como distinta e diferida em relação àquela condição própria do homem imediatamente depois da morte.
6) A Igreja, ao expor a sua doutrina sobre a sorte do homem depois da morte, exclui qualquer explicação com que se tirasse o seu sentido à Assunção de Nossa Senhora, naquilo que esta tem de único; ou seja, o facto de ser a glorificação corporal da Virgem Santíssima uma antecipação da glorificação que está destinada a todos os outros eleitos.
7) A Igreja, em adesão fiel ao Novo Testamento e à Tradição, acredita na felicidade dos justos que « estarão um dia com Cristo ». Ao mesmo tempo ela crê numa pena que há-de castigar para sempre o pecador que for privado da visão de Deus, e ainda na repercussão desta pena em todo o «ser » do mesmo pecador. E por fim, ela crê existir para os eleitos uma eventual purificação prévia à visão de Deus, a qual no entanto é absolutamente diversa da pena dos condenados. É isto o que a Igreja entende quando ela fala de Inferno e de Purgatório.
Pelo que respeita à condição do homem depois da morte, há que precaver-se particularmente contra o perigo de representações fundadas apenas na imaginação e arbitrárias, porque o excesso das mesmas entra em grande parte nas dificuldades que muitas vezes a fé cristã encontra. No entanto, as imagens de que se serve a Sagrada Escritura merecem todo o respeito. Mas é preciso captar o seu sentido profundo, evitando o risco de as atenuar demasiadamente, o que equivale não raro a esvaziar da própria substância as realidades que são indicadas por tais imagens.
Nem a Sagrada Escritura nem a Teologia nos proporcionam luzes bastantes para uma representação da vida futura para além da morte. Os cristãos devem manter-se firmes quanto a dois pontos essenciais: devem acreditar, por um lado, na continuidade fundamental que existe, por virtude do Espírito Santo, entre a vida presente em Cristo e a vida futura (a caridade, efetivamente, é a lei do Reino de Deus, e é pela nossa caridade aqui na terra que há-de ser medida a nossa participação na glória do Céu); por outro lado, os mesmos cristãos devem saber bem que existe uma ruptura radical entre o presente e o futuro, pelo facto de que à economia da fé sucede a economia da plena luz; ou seja, nós estaremos com Cristo e « veremos Deus » (cf. 1 Jo. 3, 2), promessa e mistério inauditos nos quais consiste essencialmente a nossa esperança. Se é certo que a nossa capacidade de imaginar não atinge isso, o nosso coração instintiva e profundamente tende para lá chegar.
A parusia, enquanto manifestação do domínio e do reinado de Cristo ressuscitado significa também a ressurreição dos homens. Cristo, primícias dos ressuscitados, ressuscita todos os seus em sua manifestação gloriosa (cf. 1 Cor 15, 20-28; 1 Tes 4, 14-18; Fil 3, 21). Se na parusia chega à sua plenitude o domínio de Cristo ressuscitado, isso significa a ressurreição dos homens. Não existe salvação sem a configuração com Jesus: somos chamados a levar a imagem do homem celeste e tudo isso não é possível se não participamos da ressurreição de Jesus, cheios do Espírito Santo que o Cristo Ressuscitado comunica aos homens (cf. 1 Cor 15, 44-49).
Se a ressurreição de Jesus afeta a sua humanidade inteira, nenhum aspecto ou dimensão do nosso ser poderão ficar sem receber a salvação. Também nós devemos participar completamente da glória do Senhor. A própria fé cristã exige que seja assim. Seria contraditório com esses pressupostos que somente uma parte ou aspecto do ser humano participasse da glória do Senhor, por meio do qual tudo foi feito e para quem tudo se encaminha. Esta plena participação do homem na vida de Jesus ressuscitado foi sempre afirmada pela Igreja. Quem quiser afirmar somente a imortalidade da alma, dizia Tertuliano, crê somente em uma ressurreição remediada9.
A fé na ressurreição dá ao cristianismo sua especificidade por quanto diz respeito à esperança da vida eterna. Para o NT a ressurreição foi antecipada no Batismo e no cristão, portanto, é uma realidade ainda que oculta (cf. Rom 6, 4-11; Col 2, 12; 3, 1-4; Jo 5, 24-25; 11, 25-26). Desta forma, a escatologia cristã não fala somente do futuro; tem uma dimensão de presente que nos ajuda a entender como a noção de ressurreição deve estabelecer-se em torno à comunicação da vida de Jesus, no sentido pleno e teológico do termo e não somente em relação com os aspectos “físicos” da mesma.
Na realidade a noção de ressurreição não é unívoca na Bíblia e na Tradição da Igreja: se por uma parte temos uma acepção do termo “neutral”, que fala da saída dos mortos do sepulcro para receber a recompensa da salvação ou da perdição ( cf. Jo 5, 28-29), por outra, na plenitude do seu sentido, a ressurreição significa a participação na vida de Jesus (significação eminentemente positiva). Naturalmente a afirmação da ressurreição como transformação plena do homem à imagem de Cristo ressuscitado e na participação de sua mesma vida divina não implica que possamos saber como acontecerá. É impossível descrever o mundo que nos espera. Mas a impossibilidade de encontrar modelos válidos que nos permitem explicar fenomenologicamente a ressurreição futura não significa que não possam ser estabelecidos certos princípios.
Em primeiro lugar, devemos considerar que esta ressurreição não é, para os eleitos, mais que a extensão da mesma ressurreição de Jesus. Se o domínio de Cristo ressuscitado é universal, também a ressurreição deverá alcançar a todos os homens, em todos os aspectos do seu ser. Na tradição cristã a ideia de ressurreição tem a ver com a corporeidade humana: não podemos ser totalmente nós mesmos se esta dimensão está ausente do nosso ser. O corpo ressuscitado é o corpo no qual desapareceram todas as ambiguidades que agora caracterizam nossa existência corpórea: o corpo pneumático, cheio do Espírito, com plenitude de comunicação e expressão, plenamente personalizado e não sujeito a ser um objeto, como pode acontecer agora. A ressurreição implica uma plena identidade conosco mesmos e uma plena possibilidade de comunhão (cf. Is 65, 17-21; 2 Pe 3, 13 e sobretudo Rom 8, 19-23). O domínio do Senhor ressuscitado não conhece fronteiras: a plenitude do universo material virá junto com a plenitude do homem. Mas não se trata somente de uma transformação do cosmos como elemento da plenitude do homem (o único ser do universo que Deus quis por si mesmo e o único do qual pode-se dizer, com rigor, que Deus quer salvar!). Se o homem não é homem se não está em relação com o cosmo, sua plenitude também inclui uma nova relação com o mundo transformado.
Consideremos também que o mundo material não é somente a criação de Deus mas também nele incide o trabalho e a ação humana, em seus diferentes aspectos. Qual é o valor escatológico da ação do homem no mundo? O Vaticano II (GS 39) aborda a questão de maneira equilibrada: o progresso humano não pode confundir-se com o reino de Deus e seu crescimento e, ao mesmo tempo, não pode ser considerado sem relevância para ele mesmo. A esperança do mundo futuro deve avivar a responsabilidade dos cristãos pelo presente. A caridade e seus frutos, segundo o Concílio, possuem um valor permanente. Os valores da dignidade humana e da comunhão fraterna, os frutos da natureza e também os nossos esforços, difundidos segundo o Espírito do Senhor, serão encontrados transformados e purificados de toda a mancha. No serviço terreno dos homens, se prepara de alguma forma a “matéria” do mundo futuro. Se por um lado deve-se ter presente a ruptura entre este mundo e aquele futuro, devemos pensar no valor transcendente da existência terrena e, portanto, na continuidade. Pensar na radical transformação deste mundo não implica desconhecer o valor permanente das obras, dos frutos da caridade e do nosso esforço que se realiza segundo o Espírito do Senhor. Se cremos em uma transformação do cosmos que é obra de Deus, não podemos excluir que trabalhamos segundo Deus e que isso, no fundo, também é obra sua. Mas somente através do juízo de Deus saberemos, em última análise, o que fizemos segundo o seu desígnio e vontade.
Notas de rodapé
1 CIT, A esperança cristã na ressurreição: algumas questões atuais de escatologia, 7-13.
2 Acredita em muitas existências terrestres, que há uma lei na natureza que impele a um contínuo progresso para a perfeição, que a meta final é atingida pelos próprios méritos, que à medida que a alma progride para a perfeição final assumirá, nas suas novas encarnações, um corpo cada vez menos material. Ela defende o dualismo mediante o qual o corpo é mero instrumento da alma, que o abandona depois de cada existência terrena para ocupar outro completamente diferente. No campo escatológico, nega a possibilidade de uma condenação eterna e a ideia de ressurreição da carne. Seu erro principal consiste na negação da soteriologia cristã. A alma salva-se pelo seu próprio esforço, isto é, uma soteriologia autorredentora. Contraria a soteriologia do Novo Testamento: Deus “nos agraciou em seu Bem-Amado. Nele temos a redenção por virtude de seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça, que derramou profusamente em nós” (Ef 1,6-8).
3 Jo 6,39-40.54; 1Ts 4,16-17; Simbolo Quicumque: DS 76: 1. “Quem quiser salvar-se deve antes de tudo professar a fé católica. 2. Porque aquele que não a professar, integral e inviolavelmente, perecerá sem dúvida por toda a eternidade. 3. A fé católica consiste em adorar um só Deus em três Pessoas e três Pessoas em um só Deus. 4. Sem confundir as Pessoas nem separar a substância. 5. Porque uma é a Pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo. 6. Mas uma só é a divindade do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, igual a glória, coeterna a majestade. 7. Tal como é o Pai, tal é o Filho, tal é o Espírito Santo. 8. O Pai é incriado, o Filho é incriado, o Espírito Santo é incriado. 9. O Pai é imenso, o Filho é imenso, o Espírito Santo é imenso. 10. O Pai é eterno, o Filho é eterno, o Espírito Santo é eterno. 11. E contudo ão são três eternos, mas um só eterno. 12. Assim como não são três incriados, nem três imensos, mas um só incriado, um só imenso. 13. Da mesma maneira, o Pai é onipotente, o Filho é onipotente, o Espírito Santo é onipotente. 14. E contudo não são três onipotentes, mas um só onipotente. 15. Assim o Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus. 16. E contudo não são três deuses, mas um só Deus. 17. Do mesmo modo, o Pai é Senhor, o Filho é Senhor, o Espírito Santo é Senhor. 18. E contudo não são três senhores, mas um só Senhor. 19. Porque, assim como a verdade cristã nos manda confessar que cada uma das Pessoas é Deus e Senhor, do mesmo modo a religião católica nos proíbe dizer que são três deuses ou senhores. 20. O Pai não foi feito por ninguém: nem criado nem gerado. 21. O Filho procede do Pai: não foi feito nem criado, mas gerado. 22. O Espírito Santo não foi feito, nem criado, nem gerado, mas procede do Pai e do Filho. 23. Não há, pois, senão um só Pai, e não três Pais; um só Filho, e não três Filhos; um só Espírito Santo, e não três Espíritos Santos. 24. E nesta Trindade não há nem mais antigo nem menos antigo; nem maior nem menor, mas as três Pessoas são coeternas e iguais entre si. 25. De sorte que, como se disse acima, em tudo se deve adorar a unidade na Trindade e a Trindade na unidade. 26. Quem, pois quiser salvar-se deve ter estes sentimentos a respeito da Trindade. 27. Mas para alcançar a salvação é necessário ainda crer firmemente na Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo. 28. A pureza da nossa fé consiste, pois, em crer ainda e confessar que Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, é Deus e homem. 29. É Deus, gerado da substância do Pai desde toda a eternidade; é homem porque nasceu no tempo da substância de sua Mãe. 30. Deus perfeito e homem perfeito, com alma racional e carne humana. 31. Igual ao Pai segundo a divindade; menor que o Pai segundo a humanidade. 32. E embora seja Deus e homem, contudo não são dois, mas um só Cristo. 33. É um, não porque a divindade se tenha convertido em humanidade, mas porque Deus assumiu a humanidade. 34. Um, finalmente, não por confusão de substância, mas por unidade de Pessoa. 35. Porque, assim como a alma racional e o corpo formam um só homem, assim também a divindade e a humanidade formam um só Cristo. 36. Ele sofreu a morte por nossa salvação, desceu aos infernos e ao terceiro dia ressuscitou dos mortos. 37. Subiu ao Céu, e está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso, donde há de vir julgar os vivos e os mortos. 38. E quando vier, todos os homens ressuscitarão com seus corpos, para prestar contas de seus atos. 39. E os que tiverem praticado o bem irão para a vida eterna, e os maus para o fogo eterno. 40. Esta é a fé católica, e aquele que não a professar fiel e firmemente não se poderá salvar. Glória ao Pai, ao Filho, e ao Espírito Santo. Assim como era no princípio, agora e sempre, por todos os séculos dos séculos. Amém”.
4 A hipótese é defendida por Greshake, Auferstehung der Toten, Essen 1969 e vista com simpatia por Von Balthasar e Libânio. Tem como críticos Alfaro, Ruiz de la Peña, ratzinger, ruini, pozo, kasper, bordoni-ciola. Veja-se L.F.Ladaria, Introducción a la antropología teológica, Estella 19962, 186 – nota 25. As críticas detalhadas a esta posição e às suas ramificações podem ser encontradas melhor em C. Pozo, Teologia del más allá, Madrid 19923, 302ss.
5 Gerald O’Collins apresenta quatro funções do corpo: “Antes de tudo, os nossos corpos nos inserem obviamente no mundo material... Em segundo lugar, a nossa corporeidade cria a possibilidade de ser comunicativos... Em terceiro lugar, aqui e agora os nossos corpos asseguram a nossa continuidade e o nosso ser reconhecido como a mesma pessoa... Em quarto lugar, em todos os estados da nossa vida humana, nós experimentamos a nossa corporeidade como o ‘lugar’ e o instrumento da graça, da felicidade, do pecado e da tristeza” (G. O’Collins, Gesù Nostro Redentore, 263-265). Quanto à ressurreição, “Em primeiro lugar, a ressurreição conduz a matéria a uma mais intensa participação no universo e na vida de Deus... Em segundo lugar, a ressurreição desenvolverá ao máximo a nossa capacidade de comunicar... Em terceiro lugar, talvez a maior dificuldade em procurar compreender qualquer coisa da natureza da existência ressuscitada se concentra sobre a questão da continuidade... a identidade pessoal permanece de alguma forma vinculada à continuidade corpórea... Como pode a nossa história no tempo vir ressuscitada em uma existência que não é temporal? Cada resposta que deseja ser completa deve dar-se a partir de dois pontos fixos: primeiro, o tempo e a eternidade não são diversos em modo exclusivo; segundo, o tempo é mais que uma pura e simples sucessão de eventos... Em quarto lugar, aqui e agora, a corporeidade entra essencialmente na nossa vida de pecado, de graça e de felicidade” (Idem, 265-268).
6 Tertuliano combateu-os como novos saduceus (De resurrectione mortuorum 2,2: CCL 2,922). Santo Irineu refuta-os enquanto “pessoas que não querem entender que, se fosse assim como dizem, o próprio Senhor, em quem dizem crer, não teria realizado certamente a ressurreição ao terceiro dia, mas expirando sobre a cruz, teria ido imediatamente para o alto abandonando o corpo na terra” (Adversus Haereses 5,31, 1: SC 153, 388-390). Para Irineu, toda a “economia” de Deus tem unidade pela carne: Deus fez o homem da carne, e enviou o seu Filho na carne para salvar a carne do homem (ibid., 5,14, 1: SC 153, 182). Recorde-se que a fómula “ressurreição da carne” entrou nos Símbolos da fé para excluir esta influência dos gnósticos.
7 Cf. BENTO XII, Const. Benedictus Deus: DS 1000, onde se afirma que as almas dos santos “imediatamente depois da morte” e “antes da reassunção dos seus corpos e do juízo final” “viram e vêem a divina essência com visão intuitiva e também face a face, sem mediação de criatura alguma que tenha razão de objeto visto, mas por se lhes mostrar a divina essência de modo imediato e a nu, de modo claro e patente; e que, vendo-a assim, gozam da mesma essência divina e que, por tal visão e fruição, as almas dos que saíram deste mundo são verdadeiramente bem-aventuradas e têm vida e descanso eterno”.
8 CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Carta Recentiores episcoporum Synodi (17 de maio de 1979): AAS 71 (19799) 939-943.
9 De res. Mort. 2; também 1,1.